22 agosto, 2009

CAVACO SILVA -  Que vergonha

«Há 35 anos, cerca de um mês a seguir ao 25 de Abril, houve a primeira reunião de todos os professores e assistentes da Faculdade de Direito de Coimbra, onde na altura eu iniciava a minha vida profissional. De repente, um dos mais antigos professores da casa e homem de esquerda atacou um outro que era uma alta figura do regime deposto e fora director da faculdade anos a fio. Com todas as letras acusou o colega de lhe mandar escutar as chamadas telefónicas que fazia da sua extensão na faculdade. Lembro-me como se fosse hoje. Todos ficámos em estado de choque pelo que foi uma enorme ignomínia que a grande figura moral de Afonso Queiró não merecia. As lágrimas que sulcaram a face daquele homem, que julgaríamos incapaz de chorar, que sempre protegera da polícia política os professores comunistas e a intensidade da negação confirmaram a leviandade criminosa da injúria que foi bolsada.

Para mim, jovem professor assistente apenas há dois anos, esse momento foi decisivo para passar a temer muito mais os riscos das paixões políticas enlouquecidas. E para a faculdade também foi um momento charneira, porque nesse ataque morreu a unidade que a caracterizava, apesar das antigas e claras confrontações ideológicas. O acusador acabou ministro do desvairado 5.º Governo de Vasco Gonçalves e, por isso, fácil seria dizer que um ano antes já não estaria na posse das suas faculdades mentais, apesar de ter sido a seguir o primeiro reitor da universidade após a Revolução dos Cravos. Creio que não era isso, mas apenas ódio recalcado. Como é óbvio, não pronuncio o seu nome infectante, por higiene e preocupação com a minha saúde; mas quem por Coimbra passou saberá quem era.

Disto me lembrei quando li que um assessor ou conselheiro do Presidente da República tinha dito a um jornal de referência suspeitar que Belém estava ser escutada a soldo do Governo. E, como se isso não bastasse, o PÚBLICO foi a seguir beneficiado com informação de fontes de Belém com exemplos que contextualizariam a plausibilidade da acusação.

Compreendo a reacção do primeiro-ministro, afirmando que não comenta disparates. Mas o assunto não pode ser descartado de ânimo leve. Em primeiro lugar, desejo que o assessor ou conselheiro em questão não seja meu amigo. É que sinto-me obrigado a afirmar que considero de uma gravidade sem limite o que ele disse para os jornais. Suspeitas deste tipo colocam em risco o Estado de direito pelo simples facto de serem admitidas. E espirram para cima do Presidente da República, que não pode nem deve perante elas escudar-se num silêncio prudente, mas muitíssimo ruidoso. Quem disse o que disse estará já sem a posse das faculdades mentais necessárias à vida em sociedade, na melhor das hipóteses; ou, na pior, não serve para aconselhar ou assessorar a mais alta figura do Estado.

Ou, então, sabe do que fala e é verdade que o Governo espia o Presidente da República, praticando um crime hediondo. Mas, neste caso, o assessor não podia levianamente desabafar para os jornais, antes deveria com todas as cautelas e confidencialidade informar o procurador-geral da República, para que discretamente fosse possível iniciar um inquérito.

De facto, uma acusação de espionagem política deixou de ser - pelo menos desde Watergate - algo impensável numa democracia madura, o que dá foros de verosimilhança à acusação. Por isso o ruidoso silêncio do Presidente da República (pelo menos até ao momento em que no estrangeiro escrevo este texto) abre em minha opinião a mais grave crise política desde a eleição de Cavaco Silva, que poderá levar a que o primeiro-ministro tenha de colocar o Presidente perante as suas responsabilidades, apresentando até e justificando um pedido de demissão.

Mas por trás disto estará o que pode considerar-se um sinal de radical mudança do modelo concreto do funcionamento do sistema político português, com o Presidente da República a gradualmente assumir um protagonismo que faça dele o verdadeiro líder de um bloco político que se enfrenta com outro. O sistema constitucional português não parece desejá-lo, mas não é por isso que tal prática se tornaria ilegal. E o modelo funciona noutros países, ditos semipresidencialistas, como em França. Aí todos os presidentes sempre fizeram questão em liderar o seu bloco político e ajudá-lo nos processos eleitorais.

Por razões que só serão conhecidas quando qualquer deles publicar as suas memórias, há muito que a corrente entre Belém e São Bento não passa. E recentemente foi aberta a fase de guerrilha (de que foi exemplo o tiro no pé que constituiu o que o Governo fez a João Lobo Antunes), a que parece agora seguir-se a fase de guerra convencional e sem tréguas.

Quem de imediato mais tem a sofrer com o conflito é, sem dúvida, José Sócrates, que assim vê ser mais provável que venha a perder as eleições. Mas a prazo de um ano e meio, quem mais pode sofrer será Cavaco Silva, pois verá formar-se por razões evidentes uma frente eleitoral de esquerda contra si no início de 2011, depois de ter de sustentar na prática um governo minoritário do PSD/CDS.

O contrato implícito na eleição de Cavaco Silva não fora este. Os portugueses que tornaram a sua vitória muito clara, em boa medida votaram no modelo presidencial vigente. Sampaio afastou Santana Lopes, é certo; mas fê-lo de forma transparente, frontal e dizendo que se os portugueses dessem a vitória ao PSD nas eleições de 2005, só lhe restaria o caminho de se demitir.

Por isso, este aparente devaneio estival do assessor presidencial coloca em cheque o Presidente da República. Se ficar calado sobre a questão das escutas e se for confrontado pelo primeiro-ministro, mesmo que ele se não afaste, não pode deixar de o afastar, explicando ao país as razões para o fazer. Lembraria assim Sampaio? Pois. Mas este não queria e não podia ser reeleito.» [Público assinantes]

 

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