"A empatia foi imediata. No primeiro almoço entre Fernando Madeira, fundador e patrão da Tecnoforma, e o então deputado do PSD Pedro Passos Coelho, no início de 1996 (peixe grelhado degustado num restaurante à beira-Tejo), um inesperado e agradável assunto de conversa surgiu, antes de irem ao que interessava. Ambos descobriram que tinham lido O Fenómeno Humano, do filósofo francês e padre jesuíta Theilhard de Chardin (1881/1955), que exultava o "estofo" do Homem.
Theilhard de Chardin era um otimista incorrigível, a ponto de acreditar que o Vaticano aceitaria a equiparação que defendia entre a Razão material e o dogma da Fé - tese que lhe valeu uma longa proscrição. Mas fiquemo-nos só pelo otimismo, para agarrar a história de Fernando Madeira, alentejano de Evoramonte, com curso interrompido de engenheiro no Instituto Superior Técnico, em Lisboa. Em fins dos anos 1970, é formador profissional na Lisnave, que agonizava. Não hesitou um minuto, pois, quando, em 1980, recebeu um convite para se tornar supervisor de formação da Cabinda Gulf Oil, detida pela petrolífera americana Chevron, em Angola. Dois anos depois, numa pequena sala alugada num prédio da Av. da República, no centro de Lisboa, já trabalha sozinho na sua firma, a Ergoform, que fatura à Cabinda Gulf Oil manuais, slides e outro material didático para os formandos da companhia. Em 1984, arranca com a Tecnoforma e, em 1986, instala uma offshore na ilha de Jersey (Inglaterra), a Form Overseas, Ltd., que se transforma na placa giratória dos fluxos financeiros faturados à Cabinda Gulf Oil, 5 a 6 milhões de dólares por ano, na década de 1990, "nivelando por baixo", corrige fonte conhecedora.
Foi este homem, com 52 anos em 1996, que o jovem deputado Passos Coelho, 20 anos mais novo, muito impressionou, quando Fernando Madeira quis criar uma Organização Não Governamental para o Desenvolvimento (ONGD), de que a Tecnoforma seria o mecenas. Ao aceitar ser presidente do Centro Português Para a Cooperação (CPPC), afinal o objetivo do almoço em que Theilhard de Chardin foi falado, Passos Coelho começou de imediato a elencar as pessoas certas para o conselho de fundadores. Formulou os convites, todos bem sucedidos, e explicou-os a Fernando Madeira: alguém próximo do então PR, Jorge Sampaio (seria Júlio Castro Caldas, à época bastonário da Ordem dos Advogados), do Governo de António Guterres (o deputado do PS Fernando de Sousa), da oposição (Marques Mendes, líder parlamentar do PSD), da Comunicação Social (Eva Cabral, na altura jornalista do Diário de Notícias e hoje assessora política do primeiro-ministro) e até um dirigente maçónico (coronel Oliveira Marques). Vasco Rato, atual presidente da Fundação Luso-Americana para o Desenvolvimento, que tem sido mencionado como outro dos fundadores, não consta do documento constitutivo, mas participava em refeições de trabalho, sobretudo jantares, convidado por Passos Coelho.
De resto, vê-se agora que Passos Coelho se socorreu, igualmente, de gente da sua confiança para a lista do CPPC, como o gestor Luís Flores de Carvalho (hoje presidente da Parque Escolar) ou o médico Jorge Penedo (atualmente assessor técnico do ministro Paulo Macedo e membro da direção clínica do Centro Hospitalar de Lisboa Central). Juntaram-se-lhes os juristas João Luís Gonçalves e Filipe Fraústo da Silva, secretário-geral e presidente do Conselho de Jurisdição da JSD, respetivamente, quando Passos Coelho dirigiu esta estrutura do PSD (1990/1995).
Foi, aliás, numa sala da sociedade de advogados em que Fraústo da Silva trabalhava, na Av. da Liberdade, em Lisboa, que a ?11 de outubro de 1996 ocorreu a constituição notarial do CPPC. Ângelo Correia era suposto ser também um dos fundadores, mas, relatam testemunhas, esteve ali poucos minutos: contou uma anedota sobre Guterres (um pastor que, em vez de conduzir o rebanho, se colocava no meio das ovelhas) e saiu, sem apor a sua assinatura no documento.
Sabe-se, de fontes fidedignas, que João Luís Gonçalves, escolhido para diretor do CPPC, para coadjuvar Fernando Madeira, viu ser-lhe atribuído um Audi de serviço, ?adquirido pela Tecnoforma em regime de leasing. Também ao deputado do PS Fernando de Sousa, eleito presidente da Assembleia Geral da ONGD, foi entregue um automóvel para seu uso, no caso um BMW, comprado nas mesmas condições. Já o presidente, Passos Coelho, afirmou e reafirmou ao Parlamento, recentemente, que trabalhou pro bono, a propósito da controvérsia acerca do seu pedido de subsídio de reintegração (cerca de €60 mil), concedido em 2000 pelo então presidente da AR, Almeida Santos, após o atual primeiro-ministro ter declarado que, entre 1991 e 1999, desempenhou em regime de exclusividade as funções de deputado.
'Ouro negro' a fugir entre os dedos
Fernando Madeira e a sua equipa trabalharam no duro, para rapidamente cumprirem uma exigência do Governo de Eduardo dos Santos - a "angolanização" dos quadros básicos e intermédios das multinacionais petrolíferas que exploravam o ouro negro no país. E a Cabinda Gulf Oil não podia ter ficado mais satisfeita. "Em 1986, todos os operadores de produção já eram angolanos", conta um daqueles elementos.
Como prémio, a participada da Chevron libertou a Tecnoforma da "exclusividade" a que estava amarrada, sem deixar de colaborar com a Cabinda Gulf Oil. Ou seja, a empresa de Fernando Madeira podia trabalhar, em Angola, com outras petrolíferas. ?O empresário costuma dizer que, por essa altura, a Cabinda Gulf Oil lhe "impôs" a criação de uma offshore, vantajosa para todos. E, ainda em 1986, nasceu a já referida Form Overseas, Ltd., em Jersey, e com conta no Barclays. A offshore transforma-se na placa giratória dos fluxos financeiros da Tecnoforma - que passa a prestar serviços à Form Overseas e é paga por isso. Milhões de dólares são anualmente faturados à Cabinda Gulf Oil/Chevron pela Form Overseas, que faz chegar o dinheiro à Tecnoforma.
Os benefícios eram evidentes. Com o ?outsourcing, a Cabinda Gulf Oil retirava da sua folha de salários duas dezenas de funcionários estrangeiros ("angolanização" oblige); esses formadores recebiam, em Portugal, os seus ordenados em dólares (e limpos), provenientes da offshore, quando, na altura, as empresas do País estavam proibidas de pagar aos trabalhadores em divisas estrangeiras; e a Tecnoforma tinha uma carga fiscal mínima.
Até 1994, a empresa carburou ao máximo. No Instituto Nacional de Petróleos (INP) de Angola, conseguiu chutar uma subsidiária da multinacional italiana ENI e tomar-lhe o lugar na formação profissional. Prestava serviços, além da Chevron, à ELF e BP. Para consolidar o "bom nome", fazia quase de borla cursos administrativos, de inglês e informática, no gabinete da Presidência da República, e nos Ministérios da Agricultura e da Defesa.
Mas um dos grandes orgulhos de Fernando Madeira, diz-se, foi a realização de uma conferência de dois dias (14 e 15 de julho de 1993), em Luanda, sobre Formação e Gestão em Angola, no 10.º aniversário do INP. Estiveram presentes os embaixadores português, americano e francês, e a então ministra angolana do Petróleo, Albina Assis.
Na sede da Tecnoforma no Pragal, Almada, geriam-se, mediante o pagamento de uma comissão, bolsas de estudo a angolanos enviados pela Sonangol (a empresa estatal de petróleo em Angola) ou por multinacionais como a ELF, para ingressarem no ensino superior em Lisboa e Coimbra. A empresa tratava-lhes da instalação, de assuntos vários e da gestão das verbas.
Era a "angolanização" em curso, que muito dinheiro deu a ganhar à Tecnoforma, mas que passa a ser uma ameaça. Em 1995, aqueles e outros estudantes começaram a regressar e, de canudo na mão, ocupavam ?lugares-chave nas petrolíferas - incluindo a formação profissional. Fernando Madeira apercebeu-se de que o vento estava a virar e a empresa precisava de mudar de agulha. Havia duas experiências anteriores promissoras. Em 1992, logo após o fim da guerra civil em Moçambique, a Tecnoforma concretizou naquele país, com financiamento do Instituto da Cooperação Portuguesa, um programa de reintegração na vida civil de ex-militares do Exército e de ex-guerrilheiros da Renamo. Em Angola, em 1994, com verbas do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento e da Organização Internacional do Trabalho, fez um levantamento nacional das condições de formação para o emprego.
Mas aquele começava a ser o tempo das ONGD, com estatuto de utilidade pública, isenção de IRC e acesso ao mecenato. ?E Fernando Madeira foi aconselhado a criar uma estrutura dessas, que se candidatasse a fundos comunitários e do Banco Mundial. É aqui que nasce o CPPC e, pouco depois, Passos Coelho atravessou-se-lhe no caminho.
O 'salvador' Passos Coelho
Fernando Madeira diz a um dos seus diretores, Sérgio Porfírio, que é preciso constituir uma ONGD. Por mero acaso, Sérgio Porfírio conhece João Luís Gonçalves, que fora secretário-geral da JSD, quando Passos Coelho dirigia a Jota do PSD. Diz-lhe que está envolvido na montagem de uma ONGD e que necessita de um "político credível" para presidente. João Luís Gonçalves sugere Passos Coelho. Sérgio Porfírio leva o nome ao patrão da Tecnoforma, que o aprova. O que se passou logo a seguir está atrás relatado.
Oficialmente, "o CPPC procurava dar resposta a necessidades detetadas pela Tecnoforma em Angola, Cabo Verde e Moçambique, para as quais a fórmula mais adequada seria uma ONGD". No Pragal, na sede da empresa, o n.º 13 era o da Tecnoforma e o?n.º 9 o do CPPC, mas, no interior das instalações, uma porta ligava os corredores de uma e do outro.
Em março de 1997, Passos Coelho voltou a impressionar Fernando Madeira quando lhe telefonou a dizer: "Prepare-se que vamos a Bruxelas. O João de Deus Pinheiro vai receber-nos." Voaram em executiva, no dia 10, e o então comissário europeu deu-lhes uma indicação importante - havia verbas do Fundo Social Europeu disponíveis para cursos de Função Pública em Cabo Verde e nos outros PALOP.
De seguida, Fernando Madeira e João Luís Gonçalves puseram-se a caminho de Gaia, de carro, ao encontro do professor Luís Mota de Castro, um contacto intermediado pelo deputado do PS Fernando de Sousa. Mota de Castro havia sido docente na Universidade Eduardo Mondlane, em Maputo, e podia fornecer um input relevante para o projeto de Cabo Verde, dado o conhecimento que tinha da realidade africana. E assim aconteceu, através de um documento que entregou ao CPPC.
A 1 de novembro de 1997, Passos Coelho e Fernando Madeira voltaram a voar em executiva, agora com destino à Cidade da Praia, capital cabo-verdiana. Esta diligência, porém, revelar-se-ia um desastre. As autoridades pareceram não estar avisadas da visita, que pretendia apresentar o projeto de um Instituto Superior de Formação em Gestão e Administração Pública. O ministro cabo-verdiano da Educação encontrava-se em Lisboa. Algo descortês, Passos Coelho deixou Fernando Madeira sozinho, durante dias, e foi arejar para outras paragens da ilha de Santiago. Só foi possível marcar uma reunião com o diretor-geral da Educação para a manhã do dia 4 - o que parece ter resultado de um telefonema de Passos Coelho para o ausente ministro cabo-verdiano. Mas Passos não acompanhou Madeira naquele encontro com o dirigente cabo-verdiano.?O diretor-geral chumbaria o projeto do CPPC - queria uma universidade e não um instituto de formação intermédia.
Um projeto para Angola, de promoção de "emprego para o desenvolvimento", seria também chumbado. Porém, Passos Coelho voltou a estar à altura do que Fernando Madeira dele esperava quando foi preciso obter de Isaltino de Morais, presidente da Câmara de Oeiras, uma "carta de interesse" por um curso de costura (que começou em março de 1998), no então bairro de barracas da Pedreira dos Húngaros, sobretudo habitado por cabo-verdianos, e subsidiado pelo Fundo Social Europeu (FSE). Aquela "carta de interesse" de Isaltino, aliás, até chegou ao CPPC antes mesmo de o autarca receber em audiência formal a ONGD, representada por Passos e Madeira. Já a verba canalizada pelo FSE é, na verdade, desconhecida. ?O Instituto do Emprego e Formação Profissional, após insistentes pedidos de consulta da VISÃO, acabou por responder que não encontrava o processo respetivo.
Passos ainda daria jeito ao "patrão" da Tecnoforma na escrita do último relatório de atividades do CPPC, relativo a 1998 e com uma projeção de orçamento para 1999. Fernando Madeira pediu socorro ao deputado e presidente da ONGD, porque não sabia mesmo como arrancar com o texto. Só o projeto da Pedreira dos Húngaros fora concretizado, era muito pouco. Num ápice, Passos Coelho escreveu os dois primeiros parágrafos do relatório. "O ano de 1998 não foi particularmente feliz à concretização das atividades inicialmente projetadas", começava, para depois destacar que, "independentemente de tais factos, não podemos deixar de realçar os ensinamentos recolhidos da experiência adquirida". Conta quem sabe: "Não se atrapalhou nada - num instante deu a volta àquilo."
Fontes ligadas ao processo estimam que a Tecnoforma injetou no CPPC cerca de €225 mil, no conjunto de três anos - 1997, 1998 e 1999. É um montante muito acima das verbas inscritas nos mapas contabilísticos da ONGD, arquivados no Instituto Camões e subscritos por um técnico oficial de contas, José Duro, que faleceu em 2004. Em teoria, o chamado Balancete Analítico é suposto ser mais pormenorizado e assertivo, mas parece que, até ver, ninguém sabe onde tal documento se encontra.
Nas conversas mais distendidas, à imagem daquela sobre Theilhard de Chardin, houve quem se apercebesse, à época, que Passos Coelho falhara a leitura de O Príncipe, de Maquiavel. Uma lacuna grave, dir-se-ia, em alguém que aspirava a altos voos políticos"