Que contradições!!!
Medina Carreira elogia as escolhas de Passos Coelho para o governo, mas avisa que não vai ser fácil cumprir o programa da troika em três anos. O ex-ministro das Finanças - que publicou esta semana o livro "O Fim da Ilusão" - pensa que nos próximos tempos pode ser necessário cortar mais nos ordenados dos funcionários públicos e nas prestações sociais. Fala de Salazar como de um "bom gestor", coisa que entende ser necessária ao país de hoje, mas "sem os inconvenientes políticos" do homem que governou Portugal, numa ditadura, por 40 anos.
É um crítico do funcionamento interno dos partidos políticos. Votou nestas eleições?
Nestas eleições votei.
À esquerda ou à direita?
Sabe que eu não distingo esquerda de direita. Isso é uma divisão artificial, porque toda a gente quer o Estado social, toda a gente que está na Assembleia da República quer é dar benefícios e salários, mas não há distinção. Deixou de haver revolucionários, agora é tudo gente que está bem com o sistema capitalista. Aliás, a social-democracia esgotou-se porque é uma organização político-social que se baseia na criação de riqueza e o objectivo é redistribuir essa riqueza, mas Portugal só tem dívidas para distribuir.
Mas era na social-democracia que acreditava quando estava na política.
Exactamente. O chamado socialismo democrático, mas é preciso perceber que essa solução foi uma solução da Europa próspera, com equilíbrio demográfico e que criava riqueza. E era uma solução com êxito porque no início o Estado social era pequeno. O que nós temos agora é uma economia estagnada, um desequilíbrio demográfico bastante acentuado e temos um Estado social que alimenta mais de 5 milhões de pessoas entre funcionários, desempregados, doentes e pensionistas. Isso não é sustentável.
Embora as pessoas paguem cada vez mais impostos...
Nós pagamos muito, mas o Estado gasta mais do que isso.
Como é que se explica às pessoas que vão ter de descontar cada vez mais para terem cada vez menos direitos?
É dizendo a verdade. Os que andaram a mentir é que têm dificuldade em explicar. Os piores são aqueles que ainda insistem - como os candidatos à liderança do PS - em manter este Estado social. Eu tenho medo disto, porque significa manter o nível de gastos.
Mas o PS no governo cortou no chamado Estado social.
É evidente, porque não havia dinheiro. Isso prova que é uma fantasia dizer que se é pelo Estado social.
Encontra neste novo governo capacidade para ultrapassar esta crise?
O principal traço que eu encontro como característica positiva deste governo é estar lá gente que não vive da política. É gente que não vai para lá fazer habilidades para sobreviver. São pessoas que já têm um estatuto social. Agora se isso significa alguma alteração não sei.
O novo ministro das Finanças, Vítor Gaspar, é independente e está afastado dos partidos políticos. Isso, no seu entender, é um bom sinal.
Não o conheço pessoalmente, mas há muito tempo que oiço falar dele como técnico respeitado. É um homem bem preparado, mas o futuro é que vai mostrar se tem aptidão para a política.
Não é um risco ter alguém com pouca experiência política numa altura em que é preciso aplicar medidas que desagradam à maioria da população?
Riscos há sempre. Aqui o que me parece mais relevante é que nós tivemos até agora gente que não fazia contas e parece-me que estamos a falar de pessoas que sabem fazer contas.
No Ministério das Finanças não faziam contas?
Os ministros das Finanças não fizeram contas, ou se fizeram, e não tomaram medidas, são idiotas.
Pedro Passos Coelho também não tem muita experiência política. Tem mais capacidade para liderar um governo do que José Sócrates, nesta altura?
Não é uma questão de capacidade. O que aconteceu foi que o Sócrates cedeu à ânsia de mostrar coisas com grande efeito. O TGV, as auto-estradas... Era um homem da aparência e um homem que nunca teve nenhuma profissão cá fora, ou se teve foi muito fugaz. Não foi uma pessoa educada pela vida. Para fazer política é importante ter tido uma profissão. Seja sapateiro, seja advogado ou médico...
Calculo que não goste das juventudes partidárias e dos jovens que começam cedo a fazer política, mas são esses jovens que hoje começam a chegar à liderança dos partidos.
O defeito das jotas não são as jotas em si. É o parasitismo em que muitos deles vivem. Passam a entregar-se só à política e, quando chega a hora de terem responsabilidades, não estão preparados.
É realista olhar para o programa da troika e pensar que nos próximos três anos vamos conseguir implementar um conjunto tão alargado de medidas?
As medidas deviam ser mais estendidas no tempo. Devíamos ter cinco ou seis anos para implementar o acordo. Mas este programa excedeu as expectativas com a tentativa de mexer em coisas que há muitos anos não mexíamos, como os tribunais. Isso é muito importante, porque não há solução para a questão financeira sem resolver a economia, e o relançamento da economia tem de ir no sentido de criar condições para atrair investimento. Quem tem dinheiro não vem para um país onde as soluções judiciárias demoram décadas ou para um país no qual há tanta burocracia.
Com a pressão exterior vamos conseguir, por exemplo, melhorar a justiça?
Eu há muito tempo que defendo a vinda do FMI, porque os partidos não querem tomar medidas impopulares. Era óbvio já há um ano e meio que era necessário recorrer ao FMI.
Foi mau para o país termos resistido a uma intervenção externa?
Estoirou isto. Nós andamos a endividar--nos muito mais e a criar condições mais negativas. Era óbvio que não íamos conseguir resolver os problemas sozinhos.
Acredita que vamos conseguir cumprir o acordo?
É muito difícil fazer tudo aquilo, mas o governo tem de fazer os possíveis. Podemos ter de vir a renegociar os financiamentos externos, e convém que o país não vá renegociar mal visto. Afinaríamos o nosso défice com medidas menos duras e seria útil ter mais tempo para discutir as medidas.
Este género de medidas poderá levar a protestos sociais idênticos aos da Grécia ou acha que o povo português reage com menos agressividade?
Nós somos mais calmos, menos agressivos. Do ponto de vista da sociedade temos melhores condições e a nossa situação não é tão grave como a dos gregos.
Mas vai haver cortes significativos.
2012 vai ser decisivo. Aquilo que vier a acontecer dentro de seis ou oito meses vai dar-nos um retrato do que pode acontecer. A outra condicionante é a evolução da Grécia. Uma das coisas de que eu tenho receio é que o centro da Europa se farte dos gregos e dos portugueses. Para os europeus do centro nós somos uns sujeitos que andamos a viver à custa alheia. E convém que não se exagere esse sentimento.
O que está a dizer é que podemos ser expulsos?
Os alemães estão preocupados, os escandinavos preocupadíssimos e pode haver um dia em que digam: essa gente que se vá embora. Isso já esteve mais longe de acontecer.
Não acredita na solidariedade europeia?
A solidariedade tem de ter uma lógica na sua base. Se nós tivéssemos tido um tremor de terra como o de 1755, a Europa tinha o dever de nos ajudar, mas não tem esse dever quando andámos 20 anos a gastar aquilo que não tínhamos. Não temos legitimidade para invocar a solidariedade europeia. Nós sabíamos há dez ou 15 anos que o país estava a ser mal governado.
E corremos o risco de ficar isolados?
É uma questão de enfartamento da Europa. Se dermos nota de algum descuido, de alguma zaragata, de alguma transigência, eles podem fartar-se de nós e eu tenho medo disso. Isto não é muito racional, mas é o estado de espírito dos europeus do centro.
Daqui a quantos anos é possível voltar a crescer economicamente?
Os crescimentos de 3% ou 4% são uma miragem. Feitas as contas, nos próximos anos não vamos crescer, em média anual, mais de 1%.
Com esse crescimento não conseguiremos travar o desemprego.
Se não conseguirmos recuperar investimento, onde é que se vai empregar toda esta gente que tem ido para o desemprego? O Estado tem gente a mais, ou seja, só podem ir para as empresas, mas as pequenas e médias empresas estão a desaparecer todos os dias e em 2012 deve ser uma hecatombe, porque as pequenas e médias empresas, sem bancos, vivem daquilo que nós pagamos ao balcão. Se nós não temos capacidade para consumir e os bancos não financiam, as empresas vão desaparecer.
Como vai ser possível explicar às novas gerações, que contestam nas ruas, que não vão ter a maior parte dos direitos que tiveram os seus pais?
As novas gerações, que andam pela Europa, na rua, a reivindicar direitos adquiridos e emprego para a vida e outras coisas boas que os pais tiveram, vão ter de perceber que não vão ter nada disso. Alguém vai ter de lhes explicar que não vão ter as mesmas regalias. Na minha opinião, daqui a 20 anos a Europa vai ter revoluções sociais, porque essas gerações vão ter de pagar a dívida dos pais e vão ter de os sustentar na velhice. É uma geração desgraçada.
Então essa geração, que é conhecida como a geração à rasca, tem alguma razão.
Têm razão, mas ninguém lhes explica que aquilo que eles querem não volta mais. O emprego para a vida não volta. O que me faz pena não é eles serem revoltados. Disso gosto, e é a expressão natural da juventude, mas os responsáveis políticos deviam explicar-lhes que temos de viver moderadamente. Aqui há tempos vieram aqui dois jovens e disseram--me que é preciso fazer manifestações, revoltas... E eu expliquei que a decadência da Europa não se resolve cá dentro. As revoluções só são úteis quando há riqueza para distribuir, mas tem de haver a riqueza. Se só há endividamento, o que é que se vai dar? Quando aparece o Carvalho da Silva e a esquerda a dizer que há muito dinheiro...
Não há?
Não sei onde... Eles que vão descobrir esse dinheiro, mas no dia a seguir a mexerem nesse dinheiro não fica cá nada. Vai--se tudo embora.
O que está a dizer é que a esquerda portuguesa é irresponsável?
Esses partidos deixaram de ser revolucionários e são todos social-democratas. Os partidos querem todos Estado social e boa vida, mas não há nada disso para redistribuir. O que há para redistribuir são dívidas. Essa gente anda nas nuvens. O Bloco de Esquerda anda nas nuvens. Se eles fossem para o poder, ao fim de seis meses o país estava virado do avesso. É óptimo tributar os ricos, mas se tributar 10 mil ricos e os deixar na miséria cada um de nós fica só com mais cinco ou dez euros.
Mas a banca e os empresários não têm também responsabilidade nesta crise, nomeadamente pela forma como facilitaram o endividamento das famílias?
A nossa responsabilidade foi também gastarmos mais que aquilo que tínhamos. Para a casa de campo e para o carro, mas o Estado poderia ter tentando conter isso. O que aconteceu foi que os governos ficaram todos satisfeitos, porque as pessoas estavam a viver bem. A população estava alegre e eles não fizeram nada. O problema é que estava alegre com o dinheiro alheio.
Diz que há funcionários públicos a mais. Vai ser preciso despedir nos próximos anos?
Não é desejável, mas a alternativa é todos pagarem alguma coisa. Aquilo a que eu chamo o partido do Estado tem mais de 5 milhões de pessoas e nós não temos economia para manter isso. Temos duas soluções: ou 500 mil vão fora ou todos vão pagar e sofrer cortes.
Qual a opção que preferia?
Eu humanamente preferia cortar em todos. Mais naqueles que estão melhor e menos nos que estão pior, mas isso teria de ser explicado às pessoas.
Passos Coelho fala muito em acabar com organismos públicos, mas sem despedir. Acha que pode ser útil uma reforma profunda a este nível?
Isso é uma ilusão, porque esses organismos existem, em muitos casos, só para empregarem algumas pessoas. Mas isso é uma escolha política. E pode haver estas duas hipóteses: ou manter tudo, e todos vão ter de pagar por isso, ou mandar gente para a rua. Este nível de gastos é insustentável.
Vai ser preciso cortar mais, por exemplo, nos funcionários públicos?
Sim. Cerca de 15% nos mais altos e zero cá em baixo. Isto é que seria solidariedade. Era todos ficarmos pior para que alguns não fiquem muito mal.
É inevitável cortar mais que aquilo que está previsto?
É inevitável, porque já não há impostos que mantenham isto.
Mas ainda há por onde cortar dentro da máquina do Estado?
Nestas coisas temos de fazer contas. Em pessoal, prestações sociais e juros são 80% das despesas do Estado. Se não mexermos nisto, só nos restam 20%. A margem onde se pode cortar é muito pequena se quisermos manter as prestações sociais e todos os funcionários públicos. Temos de ir mais às despesas que mexem com as pessoas (os pensionistas, os funcionários públicos, os desempregados, etc.). Já se começou a mexer aí, mas vai ter de se mexer mais. Eu se fosse ministro vinha à televisão explicar estas coisas todas...
Antes os políticos iam muito à televisão nas alturas mais difíceis. Isso ajudava?
Quando eu estava no governo ia à televisão. Não era convidado. Não ia fazer propaganda, ia explicar. Esse é que é o papel da televisão pública. É um instrumento ao dispor do poder político para explicar as coisas. A televisão pode ter um papel espantoso. A nossa sociedade podia mudar em dez anos com outra televisão e a minha opinião é que a televisão pública devia ser saneada, entre aspas. Limpar os concursos, o futebol e outras coisas inúteis.
Mas não privatizava, como quer fazer o novo governo.
Não sei. Isso é o instrumento. Eu refiro--me é ao fim. As nossas televisões podem ter um papel educativo muito importante. Esta televisão que temos, comparada com a televisão do Estado Novo, de que todos dizíamos mal, é pior. Nós tínhamos programas educativos, tínhamos teatro, tínhamos cinema. O Vitorino Nemésio...
As pessoas que podiam lá ir, mas sabe que é criticado por elogiar alguns aspectos do Estado Novo...
Mas é evidente que tinha coisas melhores. É uma estupidez pensar que era tudo mau. O que é que o Estado Novo tinha de péssimo? A política, a perseguição, que há alguma hoje sem Estado Novo. O grande problema do Salazar é que foi um produto do seu tempo, que era o tempo das ditaduras. Em toda a Europa havia ditaduras. Era a solução da época, por causa da revolução russa. Era um homem do seu tempo.
Mas foi um bom governante?
Era um bom gestor, e se nós hoje tivéssemos um bom gestor era bom. Precisamos de gestores de rigor, que não tenham os inconvenientes políticos do Salazar. Ele arrumou as contas públicas, arrumou a casa. Foi um bom gestor, que tinha ideias políticas inaceitáveis, mas um gestor necessário naquela altura.
A democracia, pelo que tem defendido, está a falhar. Há alternativa?
Nós temos de ter democracia, mas a democracia não pode ser o regime que leva o país à falência. Isso não é democracia e resulta sempre em pobreza. Sempre que tivemos democracia, o regime político levou o país à falência. Temos de ter uma democracia que saiba gerir o país e estas indicações são muito perigosas.
A democracia não tem sido compatível com contas equilibradas?
Não tem sido, porque há demasiada demagogia, há demasiado clientelismo e demasiado negocismo. A democracia tem de viver sem essas coisas.
No livro que escreveu - "O Fim da Ilusão" - diz que os problemas começaram em 1985. O professor Cavaco Silva não percebeu que era preciso preparar o país para uma nova fase?
O professor Cavaco Silva é um homem de um tempo enganador. Quando ele entrou para o primeiro governo o petróleo caiu, depois começaram a vir os fundos da União Europeia e houve as privatizações. Ele teve um período de vacas gordas e penso que se deixou iludir com as vacas daquele tempo, que em grande parte vinham do exterior. Acho que ele se entusiasmou. Depois veio o Eng.o Guterres, que se deslumbrou com a queda dos juros, e nós passámos a viver das dívidas. Não sei se se lembra de uma feijoada na ponte? A feijoada é um belo símbolo do que se vivia na altura. A malta toda porreira a comer uma feijoada e a beber vinho...
Teve pena de ter acabado o programa "Plano Inclinado", na Sic Notícias?
Tive pena. Era o único programa da televisão destinado a ajudar as pessoas a perceber. Era um programa pedagógico, em que as pessoas não tinham partido.
Qual foi a razão de ter acabado?
Não sei. Disseram-me que o Mário Crespo se zangou.
Tem muitos inimigos por causa das críticas que faz?
Não direi inimigos. Há muita gente que me olha de lado, mas é gente catalogável. É gente da classe média alta. Quanto mais sobem na hierarquia social, mais me detestam. Quanto mais se desce na hierarquia social, mais me aceitam. Ainda esta semana estive no Jardim da Estrela a passear e foram muitas as pessoas que me vieram falar, mas é a classe média baixa.
É popular?
Não é uma questão de popularidade. É aquele extracto da sociedade que tem alguma curiosidade e consegue distinguir as aldrabices das coisas certas e das verdades. Quem me detesta é quem não quer as verdades.
Já pensou candidatar-se a Presidente da República. Ainda pensa nisso?
Era para discutir estes assuntos de que estamos a falar. Não era para ganhar, mas isso ia dar grandes confusões na minha vida e o resultado não seria nenhum.
É um crítico do funcionamento interno dos partidos políticos. Votou nestas eleições?
Nestas eleições votei.
À esquerda ou à direita?
Sabe que eu não distingo esquerda de direita. Isso é uma divisão artificial, porque toda a gente quer o Estado social, toda a gente que está na Assembleia da República quer é dar benefícios e salários, mas não há distinção. Deixou de haver revolucionários, agora é tudo gente que está bem com o sistema capitalista. Aliás, a social-democracia esgotou-se porque é uma organização político-social que se baseia na criação de riqueza e o objectivo é redistribuir essa riqueza, mas Portugal só tem dívidas para distribuir.
Mas era na social-democracia que acreditava quando estava na política.
Exactamente. O chamado socialismo democrático, mas é preciso perceber que essa solução foi uma solução da Europa próspera, com equilíbrio demográfico e que criava riqueza. E era uma solução com êxito porque no início o Estado social era pequeno. O que nós temos agora é uma economia estagnada, um desequilíbrio demográfico bastante acentuado e temos um Estado social que alimenta mais de 5 milhões de pessoas entre funcionários, desempregados, doentes e pensionistas. Isso não é sustentável.
Embora as pessoas paguem cada vez mais impostos...
Nós pagamos muito, mas o Estado gasta mais do que isso.
Como é que se explica às pessoas que vão ter de descontar cada vez mais para terem cada vez menos direitos?
É dizendo a verdade. Os que andaram a mentir é que têm dificuldade em explicar. Os piores são aqueles que ainda insistem - como os candidatos à liderança do PS - em manter este Estado social. Eu tenho medo disto, porque significa manter o nível de gastos.
Mas o PS no governo cortou no chamado Estado social.
É evidente, porque não havia dinheiro. Isso prova que é uma fantasia dizer que se é pelo Estado social.
Encontra neste novo governo capacidade para ultrapassar esta crise?
O principal traço que eu encontro como característica positiva deste governo é estar lá gente que não vive da política. É gente que não vai para lá fazer habilidades para sobreviver. São pessoas que já têm um estatuto social. Agora se isso significa alguma alteração não sei.
O novo ministro das Finanças, Vítor Gaspar, é independente e está afastado dos partidos políticos. Isso, no seu entender, é um bom sinal.
Não o conheço pessoalmente, mas há muito tempo que oiço falar dele como técnico respeitado. É um homem bem preparado, mas o futuro é que vai mostrar se tem aptidão para a política.
Não é um risco ter alguém com pouca experiência política numa altura em que é preciso aplicar medidas que desagradam à maioria da população?
Riscos há sempre. Aqui o que me parece mais relevante é que nós tivemos até agora gente que não fazia contas e parece-me que estamos a falar de pessoas que sabem fazer contas.
No Ministério das Finanças não faziam contas?
Os ministros das Finanças não fizeram contas, ou se fizeram, e não tomaram medidas, são idiotas.
Pedro Passos Coelho também não tem muita experiência política. Tem mais capacidade para liderar um governo do que José Sócrates, nesta altura?
Não é uma questão de capacidade. O que aconteceu foi que o Sócrates cedeu à ânsia de mostrar coisas com grande efeito. O TGV, as auto-estradas... Era um homem da aparência e um homem que nunca teve nenhuma profissão cá fora, ou se teve foi muito fugaz. Não foi uma pessoa educada pela vida. Para fazer política é importante ter tido uma profissão. Seja sapateiro, seja advogado ou médico...
Calculo que não goste das juventudes partidárias e dos jovens que começam cedo a fazer política, mas são esses jovens que hoje começam a chegar à liderança dos partidos.
O defeito das jotas não são as jotas em si. É o parasitismo em que muitos deles vivem. Passam a entregar-se só à política e, quando chega a hora de terem responsabilidades, não estão preparados.
É realista olhar para o programa da troika e pensar que nos próximos três anos vamos conseguir implementar um conjunto tão alargado de medidas?
As medidas deviam ser mais estendidas no tempo. Devíamos ter cinco ou seis anos para implementar o acordo. Mas este programa excedeu as expectativas com a tentativa de mexer em coisas que há muitos anos não mexíamos, como os tribunais. Isso é muito importante, porque não há solução para a questão financeira sem resolver a economia, e o relançamento da economia tem de ir no sentido de criar condições para atrair investimento. Quem tem dinheiro não vem para um país onde as soluções judiciárias demoram décadas ou para um país no qual há tanta burocracia.
Com a pressão exterior vamos conseguir, por exemplo, melhorar a justiça?
Eu há muito tempo que defendo a vinda do FMI, porque os partidos não querem tomar medidas impopulares. Era óbvio já há um ano e meio que era necessário recorrer ao FMI.
Foi mau para o país termos resistido a uma intervenção externa?
Estoirou isto. Nós andamos a endividar--nos muito mais e a criar condições mais negativas. Era óbvio que não íamos conseguir resolver os problemas sozinhos.
Acredita que vamos conseguir cumprir o acordo?
É muito difícil fazer tudo aquilo, mas o governo tem de fazer os possíveis. Podemos ter de vir a renegociar os financiamentos externos, e convém que o país não vá renegociar mal visto. Afinaríamos o nosso défice com medidas menos duras e seria útil ter mais tempo para discutir as medidas.
Este género de medidas poderá levar a protestos sociais idênticos aos da Grécia ou acha que o povo português reage com menos agressividade?
Nós somos mais calmos, menos agressivos. Do ponto de vista da sociedade temos melhores condições e a nossa situação não é tão grave como a dos gregos.
Mas vai haver cortes significativos.
2012 vai ser decisivo. Aquilo que vier a acontecer dentro de seis ou oito meses vai dar-nos um retrato do que pode acontecer. A outra condicionante é a evolução da Grécia. Uma das coisas de que eu tenho receio é que o centro da Europa se farte dos gregos e dos portugueses. Para os europeus do centro nós somos uns sujeitos que andamos a viver à custa alheia. E convém que não se exagere esse sentimento.
O que está a dizer é que podemos ser expulsos?
Os alemães estão preocupados, os escandinavos preocupadíssimos e pode haver um dia em que digam: essa gente que se vá embora. Isso já esteve mais longe de acontecer.
Não acredita na solidariedade europeia?
A solidariedade tem de ter uma lógica na sua base. Se nós tivéssemos tido um tremor de terra como o de 1755, a Europa tinha o dever de nos ajudar, mas não tem esse dever quando andámos 20 anos a gastar aquilo que não tínhamos. Não temos legitimidade para invocar a solidariedade europeia. Nós sabíamos há dez ou 15 anos que o país estava a ser mal governado.
E corremos o risco de ficar isolados?
É uma questão de enfartamento da Europa. Se dermos nota de algum descuido, de alguma zaragata, de alguma transigência, eles podem fartar-se de nós e eu tenho medo disso. Isto não é muito racional, mas é o estado de espírito dos europeus do centro.
Daqui a quantos anos é possível voltar a crescer economicamente?
Os crescimentos de 3% ou 4% são uma miragem. Feitas as contas, nos próximos anos não vamos crescer, em média anual, mais de 1%.
Com esse crescimento não conseguiremos travar o desemprego.
Se não conseguirmos recuperar investimento, onde é que se vai empregar toda esta gente que tem ido para o desemprego? O Estado tem gente a mais, ou seja, só podem ir para as empresas, mas as pequenas e médias empresas estão a desaparecer todos os dias e em 2012 deve ser uma hecatombe, porque as pequenas e médias empresas, sem bancos, vivem daquilo que nós pagamos ao balcão. Se nós não temos capacidade para consumir e os bancos não financiam, as empresas vão desaparecer.
Como vai ser possível explicar às novas gerações, que contestam nas ruas, que não vão ter a maior parte dos direitos que tiveram os seus pais?
As novas gerações, que andam pela Europa, na rua, a reivindicar direitos adquiridos e emprego para a vida e outras coisas boas que os pais tiveram, vão ter de perceber que não vão ter nada disso. Alguém vai ter de lhes explicar que não vão ter as mesmas regalias. Na minha opinião, daqui a 20 anos a Europa vai ter revoluções sociais, porque essas gerações vão ter de pagar a dívida dos pais e vão ter de os sustentar na velhice. É uma geração desgraçada.
Então essa geração, que é conhecida como a geração à rasca, tem alguma razão.
Têm razão, mas ninguém lhes explica que aquilo que eles querem não volta mais. O emprego para a vida não volta. O que me faz pena não é eles serem revoltados. Disso gosto, e é a expressão natural da juventude, mas os responsáveis políticos deviam explicar-lhes que temos de viver moderadamente. Aqui há tempos vieram aqui dois jovens e disseram--me que é preciso fazer manifestações, revoltas... E eu expliquei que a decadência da Europa não se resolve cá dentro. As revoluções só são úteis quando há riqueza para distribuir, mas tem de haver a riqueza. Se só há endividamento, o que é que se vai dar? Quando aparece o Carvalho da Silva e a esquerda a dizer que há muito dinheiro...
Não há?
Não sei onde... Eles que vão descobrir esse dinheiro, mas no dia a seguir a mexerem nesse dinheiro não fica cá nada. Vai--se tudo embora.
O que está a dizer é que a esquerda portuguesa é irresponsável?
Esses partidos deixaram de ser revolucionários e são todos social-democratas. Os partidos querem todos Estado social e boa vida, mas não há nada disso para redistribuir. O que há para redistribuir são dívidas. Essa gente anda nas nuvens. O Bloco de Esquerda anda nas nuvens. Se eles fossem para o poder, ao fim de seis meses o país estava virado do avesso. É óptimo tributar os ricos, mas se tributar 10 mil ricos e os deixar na miséria cada um de nós fica só com mais cinco ou dez euros.
Mas a banca e os empresários não têm também responsabilidade nesta crise, nomeadamente pela forma como facilitaram o endividamento das famílias?
A nossa responsabilidade foi também gastarmos mais que aquilo que tínhamos. Para a casa de campo e para o carro, mas o Estado poderia ter tentando conter isso. O que aconteceu foi que os governos ficaram todos satisfeitos, porque as pessoas estavam a viver bem. A população estava alegre e eles não fizeram nada. O problema é que estava alegre com o dinheiro alheio.
Diz que há funcionários públicos a mais. Vai ser preciso despedir nos próximos anos?
Não é desejável, mas a alternativa é todos pagarem alguma coisa. Aquilo a que eu chamo o partido do Estado tem mais de 5 milhões de pessoas e nós não temos economia para manter isso. Temos duas soluções: ou 500 mil vão fora ou todos vão pagar e sofrer cortes.
Qual a opção que preferia?
Eu humanamente preferia cortar em todos. Mais naqueles que estão melhor e menos nos que estão pior, mas isso teria de ser explicado às pessoas.
Passos Coelho fala muito em acabar com organismos públicos, mas sem despedir. Acha que pode ser útil uma reforma profunda a este nível?
Isso é uma ilusão, porque esses organismos existem, em muitos casos, só para empregarem algumas pessoas. Mas isso é uma escolha política. E pode haver estas duas hipóteses: ou manter tudo, e todos vão ter de pagar por isso, ou mandar gente para a rua. Este nível de gastos é insustentável.
Vai ser preciso cortar mais, por exemplo, nos funcionários públicos?
Sim. Cerca de 15% nos mais altos e zero cá em baixo. Isto é que seria solidariedade. Era todos ficarmos pior para que alguns não fiquem muito mal.
É inevitável cortar mais que aquilo que está previsto?
É inevitável, porque já não há impostos que mantenham isto.
Mas ainda há por onde cortar dentro da máquina do Estado?
Nestas coisas temos de fazer contas. Em pessoal, prestações sociais e juros são 80% das despesas do Estado. Se não mexermos nisto, só nos restam 20%. A margem onde se pode cortar é muito pequena se quisermos manter as prestações sociais e todos os funcionários públicos. Temos de ir mais às despesas que mexem com as pessoas (os pensionistas, os funcionários públicos, os desempregados, etc.). Já se começou a mexer aí, mas vai ter de se mexer mais. Eu se fosse ministro vinha à televisão explicar estas coisas todas...
Antes os políticos iam muito à televisão nas alturas mais difíceis. Isso ajudava?
Quando eu estava no governo ia à televisão. Não era convidado. Não ia fazer propaganda, ia explicar. Esse é que é o papel da televisão pública. É um instrumento ao dispor do poder político para explicar as coisas. A televisão pode ter um papel espantoso. A nossa sociedade podia mudar em dez anos com outra televisão e a minha opinião é que a televisão pública devia ser saneada, entre aspas. Limpar os concursos, o futebol e outras coisas inúteis.
Mas não privatizava, como quer fazer o novo governo.
Não sei. Isso é o instrumento. Eu refiro--me é ao fim. As nossas televisões podem ter um papel educativo muito importante. Esta televisão que temos, comparada com a televisão do Estado Novo, de que todos dizíamos mal, é pior. Nós tínhamos programas educativos, tínhamos teatro, tínhamos cinema. O Vitorino Nemésio...
As pessoas que podiam lá ir, mas sabe que é criticado por elogiar alguns aspectos do Estado Novo...
Mas é evidente que tinha coisas melhores. É uma estupidez pensar que era tudo mau. O que é que o Estado Novo tinha de péssimo? A política, a perseguição, que há alguma hoje sem Estado Novo. O grande problema do Salazar é que foi um produto do seu tempo, que era o tempo das ditaduras. Em toda a Europa havia ditaduras. Era a solução da época, por causa da revolução russa. Era um homem do seu tempo.
Mas foi um bom governante?
Era um bom gestor, e se nós hoje tivéssemos um bom gestor era bom. Precisamos de gestores de rigor, que não tenham os inconvenientes políticos do Salazar. Ele arrumou as contas públicas, arrumou a casa. Foi um bom gestor, que tinha ideias políticas inaceitáveis, mas um gestor necessário naquela altura.
A democracia, pelo que tem defendido, está a falhar. Há alternativa?
Nós temos de ter democracia, mas a democracia não pode ser o regime que leva o país à falência. Isso não é democracia e resulta sempre em pobreza. Sempre que tivemos democracia, o regime político levou o país à falência. Temos de ter uma democracia que saiba gerir o país e estas indicações são muito perigosas.
A democracia não tem sido compatível com contas equilibradas?
Não tem sido, porque há demasiada demagogia, há demasiado clientelismo e demasiado negocismo. A democracia tem de viver sem essas coisas.
No livro que escreveu - "O Fim da Ilusão" - diz que os problemas começaram em 1985. O professor Cavaco Silva não percebeu que era preciso preparar o país para uma nova fase?
O professor Cavaco Silva é um homem de um tempo enganador. Quando ele entrou para o primeiro governo o petróleo caiu, depois começaram a vir os fundos da União Europeia e houve as privatizações. Ele teve um período de vacas gordas e penso que se deixou iludir com as vacas daquele tempo, que em grande parte vinham do exterior. Acho que ele se entusiasmou. Depois veio o Eng.o Guterres, que se deslumbrou com a queda dos juros, e nós passámos a viver das dívidas. Não sei se se lembra de uma feijoada na ponte? A feijoada é um belo símbolo do que se vivia na altura. A malta toda porreira a comer uma feijoada e a beber vinho...
Teve pena de ter acabado o programa "Plano Inclinado", na Sic Notícias?
Tive pena. Era o único programa da televisão destinado a ajudar as pessoas a perceber. Era um programa pedagógico, em que as pessoas não tinham partido.
Qual foi a razão de ter acabado?
Não sei. Disseram-me que o Mário Crespo se zangou.
Tem muitos inimigos por causa das críticas que faz?
Não direi inimigos. Há muita gente que me olha de lado, mas é gente catalogável. É gente da classe média alta. Quanto mais sobem na hierarquia social, mais me detestam. Quanto mais se desce na hierarquia social, mais me aceitam. Ainda esta semana estive no Jardim da Estrela a passear e foram muitas as pessoas que me vieram falar, mas é a classe média baixa.
É popular?
Não é uma questão de popularidade. É aquele extracto da sociedade que tem alguma curiosidade e consegue distinguir as aldrabices das coisas certas e das verdades. Quem me detesta é quem não quer as verdades.
Já pensou candidatar-se a Presidente da República. Ainda pensa nisso?
Era para discutir estes assuntos de que estamos a falar. Não era para ganhar, mas isso ia dar grandes confusões na minha vida e o resultado não seria nenhum.
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