A opinião de Estrela Serrano
A detenção de Sócrates vista do sofá
A detenção de José Sócrates foi um momento de rara oportunidade para compreender e analisar como funcionam em Portugal duas instituições fundamentais em democracia: a justiça e os media.
Estava eu, como de costume, com o televisor ligado enquanto fazia outra coisa quando fui surpreendida ao ver no rodapé de um dos canais informativos do cabo que José Sócrates tinha sido detido no aeroporto, à chegada a Lisboa, vindo de Paris. Enquanto a SIC mostrava uma imagem de um automóvel onde Sócrates estaria, apresentando-a como um “exclusivo”, eu interrogava-me porque razão Sócrates é detido à chegada e não à partida, uma vez que a detenção não terá sido uma decisão de última hora. O normal, no meu pensar, seria não o ter deixado partir ou tê-lo detido à entrada para o avião em Paris. Claro que o impacto mediático seria menor,ou mesmo nulo, mas a justiça não se faz para as televisões (achava eu). A imagem da viatura continuava a ser exibida à exaustão no écran, enquanto o repórter anunciava os crimes de que Sócrates é suspeito.
Mudei então para a CMTV, a televisão do Correio da Manhã, onde permaneci grande parte do tempo e, diga-se, não o dei por perdido A CMTV fez jus à sua condição de media do grupo com mais “exclusivos” dos casos em que José Sócrates é falado como suspeito de qualquer coisa, desde que a TVI e o Sol esgotaram “o atentado contra o Estado de direito”.
O repórter gabava-se de a CMTV ser a única estação de televisão a ter acompanhado desde a tarde de ontem, no aeroporto, a chegada de José Sócrates por uma fonte que a alertara de que ele iria ser detido à chegada de Paris. A CMTV tinha imagens mais completas e não se cansou de mostrar José Sócrates dentro da viatura, enquanto pedia ao realizador que aproximasse mais e mais o rosto de Sócrates para que ninguém tivesse dúvidas de que era mesmo ele.
Lá mais para a frente, na noite, o director-adjunto do Correio da Manhã, Eduardo Dâmaso, porventura o jornalista com melhores contactos nos vários departamentos da Justiça sobretudo o que “cheire” a Sócrates, não escondia o seu entusiasmo com a detenção do ex-primeiro-ministro.
Voltei para a SIC Notícias e vi então Ricardo Costa a fazer um comentário apocalíptico sobre o futuro do PS e do seu candidato a primeiro-ministro. Entretanto, enquanto jornalistas e comentadores afirmavam que nada se sabe de concreto porque “o caso está em segredo de justiça” e que “é preciso deixar a justiça funcionar”, iam saindo pormenores sobre as razões da detenção: um testa-de-ferro, a casa de Paris, uma conta na Suiça, a casa de Lisboa: Fuga ao fisco, fraude fiscal, branqueamento de capitais, corrupção. “Estão a gozar connosco, com esta coisa do segredo de justiça”, pensei.
Era já tarde quando desisti de ver as repetições das imagens da viatura a sair do aeroporto com Sócrates lá dentro, e da chegada ao DCIAP.
De uma coisa fiquei certa: a justiça está a funcionar e esse é o seu papel. É uma justiça com agenda e que não brinca em serviço. Escolhe os jornais e as televisões a quem dá determinadas informações e avisa-os antes de deter políticos. Prefere detê-los em lugares onde as câmaras tenham possibilidade de trabalhar e de se instalarem com alguma antecedência. Foi assim nos últimos tempos com Ricardo Salgado que queria ir voluntariamente prestar declarações mas a polícia não deixou e preferiu ir buscá-lo a casa. Foi assim agora com Sócrates, preferindo poupar-lhe o preço do táxi para casa, onde poderia “recolhê-lo” levando-o directamente do aeroporto para o DCIAP.
Cumprida que está a primeira parte da agenda – a mais espectacular – , o Ministério Público passou a um novo estádio, que é o da libertação de informação orientada para a explicação da detenção do suspeito. O “filme” é o mesmo dos vistos dourados, agora com Sócrates. Em cada dia e hora que passa são “libertados” pormenores seleccionados do processo, destinados a preparar a opinião pública para a aceitação, como boa, da medida de coacção que virá a ser imposta. “Sócrates só pode ficar detido”, dizia ontem Marinho e Pinto à CMTV.
Nos próximos dias continuarão a sair informações de dentro do “segredo de justiça” e aí teremos também os advogados a jogarem o jogo das fugas. Não sabemos se com Sócrates haverá garrafas de vinho ou caixas de robalos que ridicularizam e descredibilizam o processo mas alguma coisa haverá. Com Sócrates a simbologia deve apontar para algo relacionado com “luxo”, (para além das casas) talvez marcas de roupa, carros, ou algo assim.
Seja como for, a detenção de Sócrates é perturbadora e levanta a questão de saber porque razão ele foi sendo objecto de suspeitas alimentadas pela justiça durante tanto tempo e só agora no dia em que o novo líder do PS vai ser eleito a Justiça decide detê-lo.
Seria demasiado maquiavélico que a agenda da justiça para além de orientar a agenda dos media se intrometesse no calendário dos partidos.
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