Entrevista a Elisabetta Piqué
"Francisco é o Papa das surpresas"
por Lumena Raposo
Jornalista argentina e vaticanista, autora do livro "Francisco Vida e Revolução", Elisabetta Piqué explica porque Mario Bergoglio escolheu o nome de Francisco quando assumiu o trono de Pedro. Uma escolha que significa um programa: o de recolocar a Igreja no seu verdadeiro caminho, uma Igreja que - diz o Papa - seja "um hospital de campanha depois da batalha".
O Papa Francisco, que conhece pessoalmente, mudou depois da eleição?
Essa é uma pergunta simultaneamente muito difícil e muito fácil. Num certo sentido ele não mudou, é o mesmo homem que te telefona no teu aniversário, porque se recorda, é o mesmo homem humilde; ele sempre telefonou directamente às pessoas e continua a fazê-lo; mas ao mesmo tempo está a mudar tudo. Como arcebispo, costumava ir, na Quinta-feira Santa, aos hospitais, contactava com os tóxicodependentes e como Papa está a fazer o mesmo. De certa forma, continua a fazer o mesmo, mas agora é o Papa. As pessoas contam que, nos últimos tempos na Argentina, quando ele estava a pensar reformar-se e já sabia para onde iria viver, ele andava, não propriamente triste ou deprimido, mas sem brilho e de rosto sério. Agora parece dez anos mais novo e tem esta inacreditável energia que surpreende todos. Está sempre a sorrir. É um jesuita que acredita que está ali porque Deus quis. Está em paz e tem a alegria de estar onde Deus o quer.
Como é a situação agora no Vaticano?
Existe uma certa sensação de liberdade. É uma grande mudança. Ele fez um milagre. Este Papa significa uma imensa mudança. A Igreja estava a viver uma imensa crise que faz lembrar o Código da Vinci de Dan Brown. Óbvio que tem um grande trabalho a fazer mas é um Papa que procura reconciliar a Igreja de há dois milénios com as pessoas modernas. Tem uma visão da Igreja que esteve fechada sobre si mesma e agora tem de sair, tem de acompanhar não apenas os excluídos nem os pobres, mas toda a gente, os homossexuais, as mulheres que fizeram um aborto. Disse-o de forma muito clara que tem a visão de uma Igreja que seja um hospital de campanha depois da batalha.
Com o Papa Francisco podemos falar da Igreja dos primeiros tempos?
Muita gente afirma isso e que ele não está a inventar nada mas a ir à essência do Evangelho. E o Papa afirma que os padres têm de viver de uma forma simples, com os pobres; está a desmantelar a Igreja de pompa e do protocolo, da corte imperial. Está a desmantelar barreiras; afirma que não gosta de bispos-príncipes, mas bispos- pastores que estão com as suas ovelhas, no meio delas e com o seu cheiro. Não quer bispos nos palácios, com mentalidade de príncipes. O Papa está a agir de forma a lançar um caminho que temos de ver se os outros o vão seguir.
Quando ouviu que Bergoglio escolhera o nome de Francisco, percebeu que era todo um programa de governo?
Escolher esse nome foi o primeiro sinal de revolução porque há que ter coragem para escolher um nome que nenhum Papa até agora se atreveu a escolher. Mas Francisco é, como diz, de facto um programa. Francisco é o santo que, sendo filho de uma família rica, deixou tudo, deu tudo para se dedicar aos pobres, aos leprosos. Foi muito claro com os cardeais, ao dizer-lhes que não estão a entrar numa corte. Penso que é o Papa certo para o momento certo.
Como se sentem os cardeais na Cúria que não concordam com o Papa?
Não apenas na Cúria, mas em todo o mundo. O Papa está a dar o exemplo e é interessante ver como esse exemplo está a chegar às pessoas. Nos Estados Unidos foi a reacção das pessoas que questionaram o arcebispo de Atlanta por ter comprado uma residência de dois milhões de dólares e ele pediu desculpa e teve de a vender. As pessoas são reais e, perante o exemplo do Papa, já não ficam caladas mas questionam os seus superiores. Uns seguem-no, outros não. Como o cardeal Bertone que vai inaugurar no próximo mês um apartamento bem perto do do Papa mas de 700 m2.
O Papa terá força para meter na ordem os que não o seguem?
O bispo alemão [que gastou milhões a renovar a residência] foi mudado. O Papa é muito claro nas suas afirmações e há muitas expectativas. Há que esperar um pouco para ver se o seu programa é seguido. Mas, mesmo que haja uma pequena resistência, o povo em todo o mundo está com ele. As multidões que o vão ver são significativas. Penso que nenhum pontífice fez esta ponte porque ele não fala só para os católicos, fala para todos. Tornou-se um líder. Num mundo sem líderes ou de falsos líderes, ele é o verdadeiro líder. Por isso todos o querem ver.
Recentemente teceu duras críticas à Mafia. As consequências não o preocupam?
O Papa está a denunciar uma economia sem rosto humano, a mafia, a escravatura das pessoas; está a incomodar pessoas e grupos e sabe perfeitamente que corre riscos mas, por exemplo, quando foi ao Rio não quis o papamóvel com vidros e explicou que pode sempre haver alguém louco entre as pessoas mas que seria mais louco ir a casa de alguém numa redoma, porque quando se visita alguém é para falar, cumprimentar, abraçar. Não é ingénuo. Tem consciência de que está a dizer coisas que incomodam. Mas tem coragem. Não tem medo.
Pode dizer-se que com Francisco temos uma Igreja para as pessoas e das pessoas e não dos interesses?
Absolutamente. Tornou-se a voz dos que não têm voz . Dos africanos, dos emigrantes; do escândalo da fome, não porque não haja comida mas porque está mal distribuida. Viu isso. É um filho de emigrantes, viu o fim da classe média, a criação das imensas favelas argentinas; viu a corrupção, viu que as receitas do FMI não funcionam. Não é por ter escolhido o nome de Francisco que se preocupa. Ainda antes de ser padre já escolhera defender os oprimidos; vem de há muito, não é de hoje. Por tudo isso é amado, é um líder porque é a voz dos excluídos, dos que não contam.
Quando o conheceu?
Em 2001 quando ele foi a Roma para receber o barrete cardinalício que lhe foi imposto por João Paulo II. Recebi um telefonema do meu jornal - La Nacion da Argentina - a dizer que o arcebispo abrira uma excepção e ia dar-me uma entrevista, que era um jesuita. Não sabia mais nada. Fui e de imediato fiquei impressionada com aquele homem simples, que pensava cada resposta e que cada frase era podia ser um título. Mas o mais tocante é que, três ou quatro dias depois, o meu telefone tocou e era ele a agradecer a entrevista. Quantas pessoas te telefonam a agradecer as entrevistas? Ninguém! É incrível! É realmente humano!
Era católica?
Sim mas uma católica típica ... não muito praticante.
E depois de o conhecer?
Conhecê-lo fez uma grande diferença. Porque é a pessoa mais aberta que conheço, não tenta convencer ninguém com a palavra. Ele actua e por isso atrai, convence porque actua. É muito emocionante vê-lo a agir; passa horas com os doentes, e é genuíno, autêntico. E as pessoas sabem que ele é autêntico.
Quando foi eleito, nos jesuitas muitos ficaram em silêncio e não foi de emoção?
Porque tinham uma relação complexa com ele. Mas agora os jesuitas que se calaram devem estar felizes porque, afinal, ele não era o conservador que diziam. Ao mesmo tempo assume que, quando era provincial tinha apenas 36 anos, era muito jovem e, portanto, cometeu erros. E essa atitude torna-o especial. Alguma vez vimos um Papa que quase diariamente se assume como pecador? Ele está a tentar dizer que é normal.
Qual a situação actual na Cúria?
Na Cúria há pessoas que querem manter os seus privilégios e estabilidade. Há confusão e incerteza, porque ele é o Papa das surpresas. Ninguém sabe o que decidirá amanhã. Por exemplo, criou o secretariado da economia e não é por acaso que tenha colocado à sua frente um cardeal do fim do mundo, um australiano. Havia um poder italiano que o Papa está a desmantelar. Há anos que a Itália controla a Cúria. Para o Papa a Cúria é para servir não só o Pontífice mas a Igreja em todo o mundo. Quer a descentralização. Não é fácil mas vai avançando.
Acha que se Francisco tiver a consciência de que não pode limpar a casa irá resignar?
Não sei. Há muita gente que está convencida de que seguirá Bento XVI se não se sentir bem. Espero que não, mas pode fazê-lo por questões de saúde não por medo. Já conseguiu muito. É um homem que tem coragem e que também viu os últimos anos de João Paulo II. Foi terrível por um lado, pela situação na Cúria, mas por outro ele deu um exemplo de heroísmo ao ficar até ao fim.
A imagem do Papa moribundo terá ajudado a Igreja?
Não sei. Eu estava grávida quando estava a cobrir a agonia de João Paulo II e o meu primeiro filho chama-se João Paulo por causa dele, é alguém que admiro profundamente. Cobri os seus últimos anos e foi comovente ver a sua determinação no sofrimento. Foi terrível vê-lo definhar mas ele teve a coragem e a humildade, a mesma que teve Bento XVI para um dia tomar a decisão que tomou.
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