O rearranjo da esquerda
(Daniel Oliveira, in Expresso, 29/08/2015)
Daniel Oliveira
A vitória do Syriza não foi apenas um epifenómeno grego. Foi um sinal. Também o foram a sua derrota perante Berlim e Bruxelas e sua divisão interna, que deu origem a um novo partido, mas que permitirá a Tsipras ocupar definitivamente o espaço do PASOK. Bem ou mal, a reconfiguração da esquerda grega desilude quem acreditava que estaríamos a assistir à sua radicalização. Na Europa, se isso está a acontecer é à direita, com a sua divisão em dois campos radicais: o ultraliberal, quase revolucionário, e o xenófobo, com uma agenda contra a modernidade. Dois campos que, em determinados contextos, até se podem aliar. Foi o que aconteceu na Finlândia, em que liberais, conservadores e nacionalistas, liderados por um milionário, começaram o processo de desmantelamento do exemplar Estado social do país.
A esquerda não se está a radicalizar, está a reconfigurar-se. O “modelo social europeu” foi abandonado pelos partidos socialistas e sociais-democratas, que aceitaram o fundamental das chamadas “reformas estruturais” para a desregulação e privatização das funções do Estado. Como a política tem horror ao vazio, esse espaço com um forte apoio social está a ser reocupado.
Na Grécia, por um Syriza em transfiguração. Em Espanha, através do aparecimento do Podemos. É verdade que caiu nas sondagens depois do que aconteceu com Tsipras e que não tem sido fácil gerir o seu discurso dúbio em relação a fenómenos como o do nacionalismo catalão, que vai a votos a 27 de setembro. Mas a vitória das listas de cidadãos que patrocinou em Barcelona e em Madrid e as alianças locais com o PSOE tornaram o movimento incontornável para um futuro governo à esquerda. O rearranjo do sistema partidário à esquerda por essa Europa fora não acontecerá apenas através do aparecimento de novas forças ou do crescimento e moderação de forças já existentes na esquerda radical. Ele pode resultar de revoluções internas dentro dos próprios partidos do centro-esquerda. A possibilidade de uma vitória de Jeremy Corbyn, socialista de todos os costados, na corrida interna à liderança dos trabalhistas britânicos está a deixar nervoso o establishment da decadência ideológica do partido e pode vir a ser tão ou mais relevante do que os resultados do Podemos ou do Syriza.
O Estado social português foi construído poucos anos antes de começar a ser posto em causa na Europa através de um acordo entre um PS sem implantação sindical e um PSD impossível de caracterizar ideologicamente. Tudo aqui é diferente e os efeitos do que está a acontecer na Europa vão demorar a sentir-se. Mas o espaço que, por cá, foi deixado vago pelo PS e em parte pelo PSD terá, também ele, de ser ocupado. Até porque a defesa do Estado social tem, ainda mais em Portugal, uma vocação claramente maioritária. A questão é saber quem terá unhas para começar a reconfigurar a esquerda nacional: os chamados jovens turcos do PS? Uma esquerda radical que ainda tenha massa crítica para se reposicionar e falar a um eleitorado mais moderado? Novas forças descomplexadas em relação aos ressentimentos do passado? Uma outra coisa qualquer que não estamos a ver? Depende muito do que for acontecendo na Europa e da qualidade dos protagonistas nacionais.
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