"O primeiro-ministro afirmou, na sexta-feira passada, durante o
debate quinzenal no Parlamento, que «as dívidas são para se pagar» e «os acordos
são para cumprir». Curiosa proclamação essa, vinda do chefe de um governo que
acumula dívidas sobre dívidas (que já atingem milhares de milhões de euros) a
quem lhe vende fiado ou lhe fornece serviços a crédito. É óbvio que Pedro Passos
Coelho se dirigia aos agiotas internacionais (agora, eufemisticamente,
denominados «mercados») e àqueles beneméritos (FMI, UE e BCE) que cobram ao povo
português centenas de milhões de euros em juros e comissões pela «ajuda» que
estão a prestar ao governo e aos banqueiros deste país. O aumento generalizado
de taxas e de impostos, o confisco, em 2011, de metade do 13.º mês a quem
trabalha por conta de outrem, a apropriação dos subsídios de férias e de Natal
dos funcionários públicos, os cortes na saúde bem como o aumento desumano das
chamadas taxas moderadoras, o aumento em flecha dos preços dos transportes e dos
medicamentos, a cobrança de portagens em rodovias essenciais para o progresso de
importantes regiões do país são apenas alguns exemplos de outras contrapartidas
daquela desinteressada ajuda internacional.
Mas, ao mesmo tempo que se assume como um exactor implacável das populações,
sem se preocupar com o agravamento das desigualdades sociais e económicas, o
governo age em relação aos seus credores internos como um vulgar caloteiro, ou
seja, pura e simplesmente não paga o que deve, deixando que as dívidas se
acumulem indiferente aos problemas que esse incumprimento causa à economia das
empresas, à confiança no comércio jurídico ou à vida das pessoas.
O que se passa com os advogados que prestam serviço no âmbito do sistema de
acesso ao direito é um exemplo bem elucidativo dessa cultura de inadimplência
agora elevada à dignidade de razão de estado. Com efeito, o governo recusa-se,
sistematicamente, a pagar-lhes os seus honorários e a reembolsá-los das despesas
que efectuaram em nome dos cidadãos que representaram em tribunal. Repare-se que
um advogado nomeado para patrocinar ou defender um cidadão que não possua
recursos para constituir um mandatário num processo judicial, só pode reclamar
os seus honorários depois de o processo estar concluído. Durante um, dois, três
ou mais anos esse profissional trabalha sem receber qualquer quantia a título de
honorários ou sequer como reembolso das despesas que entretanto vai efectuando
no interesse da justiça. Todas as despesas relacionadas com o processo terão
também de ser pagas pelo próprio advogado, as quais, igualmente, só serão
reembolsadas depois de o processo estar findo.
Desde que assumi a presidência da Ordem dos Advogados procurei dignificar o
sistema de apoio judiciário no sentido de permitir aos cidadãos mais pobres um
efectivo acesso a justiça, contribuindo, assim, para o reforço do estado de
direito e para a paz social. Sublinhe-se que antes o patrocínio oficioso era
prestado principalmente por advogados estagiários e até por funcionários
judiciais, ou seja, por quem não estava habilitado a fazê-lo. Agora, só
advogados podem prestar esse serviço, em respeito, aliás, pelo princípio
constitucional da igualdade na protecção jurídica. É certo que nem tudo está
bem, mas está seguramente muito melhor do que antes. Porém, a esse esforço de
dignificação este governo respondeu deixando de pagar as suas dívidas a esses
advogados e, mais do que isso, desencadeando uma campanha sem precedentes contra
a credibilidade pública e a dignidade desses profissionais, com o único
objectivo de justificar o calote.
É certo que mais cedo ou mais tarde o chefe do governo acabará por reconhecer
a insensatez de ter nomeado para ministra da justiça uma advogada politicamente
instável, proveniente de uma das grandes sociedades de advogados de Lisboa,
aparentemente, mais interessada em beneficiar amigos e familiares e em ajustar
contas com quem a derrotou democraticamente dentro da OA do que em resolver com
seriedade os problemas da justiça. Só que, até lá, ela lá vai continuar com a
sua actuação errática, inebriada pela bajulação do seu séquito de boys/cortesãos
e deslumbrada com as sucessivas manchetes que origina nos tablóides lisboetas."
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