24 março, 2015

Sócrates

Peço desculpa por discordar de tão sábia argumentação jurídica

Publicado em Março 23, 2015 por estrelaserrano@gmail.com no blog “vai e vem”

Não sendo jurista atrevo-me a contrapôr a minha opinião de simples cidadã ao artigo publicado hoje no Público pelo ilustre penalista e professor universitário, Costa Andrade, sobre a competência do Supremo Tribunal de Justiça (STJ) para julgar um ex-primeiro ministro (ex-PM) por crimes alegadamente cometidos no exercício de funções de primeiro-ministro. Defende o penalista que o STJ não é competente para  julgar um ex-PM por crimes praticados enquanto foi PM. Embora o autor recuse discutir o caso pessoal de José Sócrates, o artigo nasce da polémica levantada em torno do processo em que ele é arguido.

Sujeitando-me às habituais reacções de juristas sobre a “incompetência” de não-juristas que se atrevem a comentar questões ou decisões relacionadas com a justiça, ouso contra-argumentar com base na lógica e no raciocínio  dedutivo.

Não sendo as leis criadas  para serem entendidas apenas por juristas e, por outro lado, não podendo os cidadãos invocar o desconhecimento da lei para justificarem o seu incumprimento,  parto do principio de que o legislador cria as leis para serem entendidas por todos e não apenas por juristas.

Posto isto, diz o artigo 11.º, n.º 3, do Código do Processo Penal (CPP), que compete ao STJ “em matéria penal”. “Julgar o Presidente da República, o Presidente da Assembleia da República e o Primeiro-Ministro pelos crimes praticados no exercício das suas funções”.

Referindo-me ao caso José Sócrates, o ex-PM está indiciado pelo crime de corrupção passiva (entre outros) praticado quando era primeiro-ministro. Aliás, se não fosse primeiro-ministro este tipo de crime não se lhe aplicaria, visto que o mesmo é aplicável apenas a quem exerce funções públicas.

Assim sendo, o Sócrates que terá praticado esse crime é o Sócrates-primeiro-ministro e não o Sócrates-cidadão-comum. O facto de no momento em que é investigado e detido por indícios da prática desse crime ele não ser já primeiro-ministro não muda a natureza do crime, isto é, não deixa de ser “corrupção passiva”, sendo que o Sócrates-cidadão-comum não pode agora augumentar que não sendo já primeiro-ministro não pode ser acusado de um crime que só pode ser praticado por um primeiro-ministro.

Quem é que está afinal indiciado  de corrupção? É o Sócrates-primeiro-ministro ou o Sócrates-cidadão-comum?  Na versão do penalista Costa Andrade, o alegado crime foi praticado pelo Sócrates-primeiro-ministro mas quem será julgado será o Sócrates-cidadão-comum. As prerrogativas de primeiro-ministro valem só para a qualificação do crime mas não valem para julgar quem o praticou. Porque se quem o praticou foi o Sócrates-primeiro-ministro quem deve julgá-lo é o STJ.

Um ex-PR/ex-PAR/ex-PM não deixam de ser responsáveis pelos actos praticados durante o exercício de funções em qualquer momento das suas vidas posteriores ao exercício dessas funções. Num mero reciocínio lógico, o momento em que um ex-PR, ex-PAR e ex-PM são julgados não se sobrepõe ao tempo real em que cometeram alegados crimes que só os podiam ter cometido nessa qualidade.

Imaginando-se que em Portugal o Ministério Público (MP) possui uma leitura do CPP idêntica à do penalista Costa Andrade, isto é que o Supremo só tem competência para julgar um crime cometido por um PR/PAR/PM enquanto ele exercer essas funções, pode prever-se uma situação em que um deles  comete um crime enquanto exerce o cargo mas  o MP  decide investigar esse crime apenas quando ele deixar a função para que  não seja julgado pelo Supremo. Isso daria ao MP a possibilidade de decidir  quando um – PR, PAR, PM –  seria ou não julgado pelo Supremo. Bastaria atrasar o processo até o titular deixar o cargo.  Tratar-se-ia de uma situação aberta ao arbitrio do Ministério Público, que não está certamente no espírito da lei.

O absurdo, a meu ver, da interpretação do penalista Costa Andrade é  ela defender que um ex-PM não pode ser julgado como PM por um crime que só pode ter cometido precisamente  por ser PM.

Acresce que, atendendo ao critério da “justiça exemplar” ultimamente em voga, de uma maior dureza nas penas para políticos, teríamos, na interpretação do penalista Costa Andrade, que um ex-PR, ex-PAR, ex-PM, ficaria sujeito a dois tipos de justiça: seria investigado e acusado como um cidadão comum mas julgado como detentor de um alto cargo do Estado.

Será que isto tem lógica?

A interpretação de Costa Andrade parece ainda  excluir a prática vigente em muitos países,  em que ex-PRs e ex-PMs são objecto de cerimónias protocolares com tratamento correspondente às  funções que exerceram, como é o caso de funerais de Estado para ex-titulares desses cargos.

 

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