Por Miguel Júdice
"Quando li - no dia 1 de Abril e na versão on-line do Diário de Notícias - que o procurador da República Lopes da Mota era acusado de ter feito pressões sobre os procuradores encarregados do caso "Freeport", pensei que se estava perante uma "notícia" própria do dia. Infelizmente, a versão on-line do PÚBLICO tinha um take de 31 de Março a dizer o mesmo.
Seja o que for que Lopes da Mota tenha afirmado na conversa com os procuradores que investigam o caso, não o devia ter dito, por não ser superior hierárquico deles, ter sido membro do Governo de Sócrates e pela dificuldade de prova sobre o que se passou. Como diria o Ferrante (o nosso D. Afonso IV) da Reine Morte, o dr. Lopes da Mota deveria ser condenado pelo crime da incompetência. O tema é de tal modo sensível que só com pinças deveria ser abordado e nunca à portuguesa, ao género "somos todos gajos porreiros", "não há rapazes maus", etc.
Este episódio, qual árvore que oculte a floresta, não deve no entanto afastar-nos do essencial. Vamos então a ele.
A investigação criminal em Portugal é muitas vezes preguiçosa e sabe utilizar a inexistência do princípio da oportunidade para justificar a eternização das investigações. Os exemplos de que tive conhecimento em mais de 30 anos de prática profissional e em três anos como bastonário dariam para encher todas as páginas do PÚBLICO de hoje.
Em função do que foi acordado no Congresso da Justiça, é certo, tornou-se mais difícil prender para investigar, em vez de investigar para prender. Mas, desde que não haja prisão preventiva, o tempo é abundante. É por isso perfeitamente possível que alguém seja investigado anos a fio para no final nada se provar; ou que a teimosia da investigação e a tendência de alguns juízes de instrução para em caso de dúvida pronunciar conduzam a julgamentos em que a falta de provas provoca absolvição. A lógica do nosso sistema é outra: se o inquérito e a instrução não demonstrarem factos seguros, não deverá o processo continuar. Mas não é assim que funciona.
Este é o pão nosso de cada dia. E o Freeport pode ser um caso de escola para o exibir: pois se um senhor afirmou numa gravação que deu dinheiro corruptor para o ministro do Ambiente através de um primo e se, por hipótese, este tem uma catrefada de primos, só após devassar as contas bancárias de todos os primos, inquirir todas as polícias do mundo, interrogar todos os que com tais primos convivem e os próprios primos (e um deles está na China...) é que se pode concluir se é verdade ou não; isto na lógica habitual do MP. Mesmo que o dito senhor venha a afirmar que não dissera a verdade (nada tendo aliás a ganhar em dizer e, sendo arguido, podendo até mentir). Temos inquérito para anos, provavelmente.É certo que questões legais permitiriam em muitos casos arquivar, se e na medida em que a factualidade aparente apontasse para que, a haver crime, ele esteja prescrito. Mas quem não se lembra do caso do sangue contaminado que deu cabo da vida política de Leonor Beleza durante uma década? Era óbvio que, a haver culpa, a dela seria por negligência e a prescrição matava o processo. Mas o MP insistiu na tese do dolo para com isso manter o processo vivo. Leonor Beleza foi absolvida.
Tudo isto é agravado pelo facto de em Portugal ninguém na investigação criminal ligar muito à jurisprudência dos tribunais superiores (que vezes de mais é contraditória...) e o sistema de precedentes do mundo anglo-saxónico não funcionar entre nós.
E tudo isto se complica porque - apesar do que resulta da lei - o Ministério Público é uma mera colecção inorgânica de juristas, sem hierarquia, em que ninguém dá instruções e todos as recusam, vindo para os jornais se e quando alguém ousar fazê-lo. Por isso ninguém arrisca ordenar seja o que for, mesmo que seja óbvio que o devesse fazer.
Como se isto não chegasse, em Portugal a jurisprudência não valoriza como factor de indemnização, a favor de inocentes investigados anos a fio, a absolvição ou o arquivamento. Isso conduz a que não ocorra (como nos EUA) um incentivo a que a investigação não acuse sem ter probabilidades muito sérias de sucesso. Por defeito, acusa-se, pronuncia-se, julga-se. Felizmente ainda não se condena por defeito.
No passado isto era grave, mas só os mais próximos da vítima é que sabiam que alguém estava a ser investigado. Actualmente com os media em cima e o segredo de justiça em baixo, todos sabem. E a situação é, por isso, sempre de catch 22: se for arquivado um processo mediático, a opinião pública fala de pressões; se não for arquivado, também. Ninguém afinal acredita na justiça e muitos procuradores são grandes responsáveis disso, pela forma como usam e abusam dos media para as suas finalidades próprias.
O processo "Casa Pia" foi essencial para que os direitos de defesa dessem um passo em frente. Espero que o caso "Maddie" sirva para que os meios de investigação policial de cena do crime também avancem. Acredito que o caso "Freeport" traga a reforma profunda da investigação criminal por que venho pugnando há muitos anos.
Infelizmente, penso que o primeiro-ministro irá ter o calvário de Leonor Beleza, o que é gravíssimo para a credibilidade do Estado Português e para a estabilidade das instituições em época de crise. E seria fácil evitá-lo: num país normal, Sócrates já fora acusado ou teria arquivado em relação a si o processo. Para o sistema judicial e a sua imagem qualquer das soluções serve; eternizar tudo é que não serve.
Temo, por isso, que este tipo de situações vai continuar no sistema político português. Como há dias me dizia um grande advogado, a 1.ª República morreu muito por causa dos tiros que na rua atingiam tudo e todos. A 3.ª República já não tem desses tiros, mas tem os tiros de canhão que os telejornais lançam quase diariamente, com absoluta impunidade. Os efeitos poderão vir a ser ainda piores.»" <Publico>
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