«Quando foi construído, o Bairro da Bela Vista em Setúbal, não seria um paraíso, mas tinha condições de qualidade de vida muito razoáveis, muito acima do que os que para lá foram viver estavam habituados e muito próximo daquilo que de melhor um país que não é rico pode fazer por comunidades desfavorecidas. Nem a crise actual nem o desemprego ou a exclusão social podem justificar que, na Bela Vista, como em outros 'bairros sociais' construídos de raiz e com condições mais do que aceitáveis, ao fim de pouco tempo tudo esteja escavacado pelos seus habitantes. Não é porque alguém está desempregado ou se sente marginalizado socialmente que tem o direito de rebentar com o elevador do prédio, pintar e sujar as paredes, vandalizar os espaços verdes ou ficar meses sem mudar uma lâmpada fundida.
O debate desta semana na Assembleia da República sobre os acontecimentos violentos da Bela Vista foi uma oportunidade perdida para que, com a contribuição de todos os quadrantes políticos, se iniciasse uma discussão séria sobre estas questões, antes que o incêndio, por enquanto sob controlo, nos bata à porta, como sucedeu em França ou na Grécia. Infelizmente, estamos em ano plurieleitoral e parece que toda a política se resume a duas abordagens: por um lado, o Governo a fazer a propaganda do que fez; por outro, a oposição a atribuir ao Governo a culpa de todos os males, desde a crise do subprime nos Estados Unidos até à responsabilidade pelos jovens que disparam tiros sobre a esquadra da PSP na Bela Vista.
Pela esquerda, Loucã repetiu os lugares-comuns mais primários da enciclopédia política, exigindo ao Governo "um programa de emergência, a aprovar amanhã, que dê segurança, pão e emprego e acabe com os guetos no país inteiro". Um pouco mais de ousadia e teria pedido um programa social que desse a cada habitante dos guetos um bólide 'quitado' para eles se entreterem a fazer corridas nocturnas clandestinas na Ponte Vasco da Gama ou na Via de Cintura Interna. Visto assim, o problema é simples: o desemprego gera fatalmente violência, a pobreza gera crime. Logo, a solução é simples: emprego para todos (onde?), bem-estar para todos. Quanto custa, quem paga, como se paga, isso são pormenores.
Pela direita, pediu-se o habitual: mais polícia, menos imigrantes, mais repressão. Mas Paulo Portas acrescentou, e com razão, que mais polícia só António Costa é que a teve em Lisboa para a caça à multa.
Pelo Governo, Sócrates fez o que lhe competia — defender a polícia — e aquilo que faz em qualquer situação: responder com números, números que ninguém controla, ninguém sabe se são verdadeiros ou não e se alguma vez saíram das leis e do papel para se transformarem em actos concretos com reflexo na vida concreta das pessoas.
Acontece que todos têm uma parte da razão e ninguém a tem por inteiro. Porque a compulsão para o debate político infrutífero, para o confronto visando exclusivamente as sondagens e a popularite, impede um esforço concertado de todos para se chegar a um consenso sobre uma visão de conjunto para um problema que é mais do previsível que terá de ser atacado, de cima a baixo, antes que se transforme numa bomba de fragmentação a explodir estilhaçando tudo à volta.
Se quisermos começar por ir à mina de água, o problema nasce logo no desordenamento territorial que se tem vindo a agravando. Seria necessário compreender, de uma vez por todas, que quando se seguem anos a fio de políticas que conduzem à morte do mundo rural e ao despovoamento do interior, se está a criar um problema que vai ser sentido a jusante. Quando, como fez este Governo recentemente, se acaba de liquidar a Reserva Agrícola, quando a agricultura é substituída por plantações de eucalipto que não criam um posto de trabalho, ou por campos de golfe, quem não queira ou não possa reconverter-se em caddie ou vigilante de fogos florestais só tem como destino vir habitar um desses guetos nas grandes cidades, onde lhes prometem emprego, com comodidades novas e centros comerciais para passear ao fim-de-semana. E o mesmo acontece quando não há políticas fiscais agressivas, políticas de descentralização administrativa séria, que fixem populações nos centros urbanos do Interior. E, quando essas populações que desaguaram nas grandes cidades por falta de alternativa, se deparam com uma crise que lhes rouba os prometidos empregos, não lhes restam sequer as relações de vizinhança e de entreajuda a que estavam habituadas. Porque, como bem sabemos, não é por haver uma multidão à nossa volta que estamos menos sós.
Depois, é evidente que a questão da imigração e das quotas para imigrantes é uma questão séria e que precisa de ser debatida, sem preconceitos, quer do ponto de vista social, como criminal. Porque se, por um lado, os imigrantes acrescentam uma multiculturalidade que é salutar, se rejuvenescem a população e até são essenciais para o financiamento da Segurança Social, também parece inescapável pensar que o país não pode acolher, sob pena de graves custos e distúrbios sociais, aqueles que não tem condições para receber decentemente. E se, do ponto de vista criminal, é mais do que abusivo pretender que o aumento da imigração corresponde fatalmente ao aumento da criminalidade, também não há como negar o que todos os relatórios dizem: que a criminalidade violenta, organizada, grupal, está a ser largamente importada e protagonizada por imigrantes, sobretudo do Leste.
O passo seguinte é reflectir até que ponto a construção de bairros sociais — sobretudo se habitados por comunidades étnicas particulares, misturadas ou não entre si — é uma boa solução ou antes um barril de pólvora pronto a explodir. Quantos bairros sociais destes temos com bons resultados? Porque é que em Braga, onde eles acabaram, a criminalidade diminuiu? As populações autóctones rejeitam a integração nos seus bairros de negros, ciganos ou oriundos do Leste? Mas terão elas o direito de decidir ou isso é política inalienável do Estado (foi a questão de Oleiros)?
Decisiva é também a questão de saber quais os limites de actuação que devem ser concedidos à polícia e quais os meios necessários para que a polícia não fique à defesa, entrincheirada na esquadra, enquanto os bandidos ocupam a rua, fazendo dela o seu farwest privado. Mas também é necessário que se assente que um carro em fuga, mesmo que com presumíveis delinquentes lá dentro, não justifica que se atire a matar. E, sobretudo, que a falta de treino ou de perícia da polícia não pode continuar a servir de desculpa para os tiros que são disparados para os pés e acabam por atingir a cabeça dos suspeitos.
E, finalmente, julgo que as próprias comunidades destes bairros têm de ser responsabilizadas, naquilo que são os seus deveres. O país não tem obrigação de pagar prédios que são vandalizados ou jardins que só servem para largar os dejectos dos cães ou passar droga. Os pais têm de ser responsabilizados pelo que fazem os filhos, os condóminos pelo estado do prédio, as associações locais pelo uso dos espaços de fruição comum. E um delinquente de 14 anos tem de ser travado e castigado, antes que se transforme num bandido de 20 anos. A liberdade de não viver cativo de uma minoria de arruaceiros também é tarefa de cada um.» [Expresso assinantes] «Miguel Sousa Tavares»