«O discurso de Passos Coelho, pretendidamente de boas-vindas a Angela Merkel, ultrapassou a indispensável cortesia para se transformar numa inqualificável sabujice. A alemã esteve seis horas em Lisboa apenas para apoiar e aplaudir a política do primeiro-ministro português. Afinal, a sua política. E aquele perdeu completamente o mais escasso decoro e o mais esmaecido pudor. Qualquer compatriota bem formado sentiu um estremecimento de vergonha ante o comportamento de um homem, esquecido ou indiferente à circunstância de, mal ou bem, ali representar um país e um povo.
A submissão a Angela Merkel e ao sistema de poder que ela representa atingiram o máximo da abjecção quando Passos estabeleceu paralelismos comparativos entre trabalhadores alemães e portugueses, minimizando estes últimos, e classificando aqueles de exemplares. A verdade, porém, é que as coisas não se passam rigorosamente como ele disse. Os portugueses trabalham mais horas, recebem muito menos salário, descansam menos tempo, dispõem de menores regalias e de cada vez mais reduzida segurança.
O sistema de poder que Angela Merkel representa e simboliza, imitado por Pedro Passos Coelho, fornece a imagem e a prova de um clamoroso défice político. Além de ser uma dissolução ética. A associação entre a alemã e dirigentes portugueses não é de agora: José Sócrates (apesar de tudo recatado na subserviência) caracterizava-se por uma fórmula intermédia, que queria resistir à fragmentação da identidade. Quero dizer: demonstrava um outro carácter.
Nem mais tempo, nem mais dinheiro, disse a chanceler à jornalista Isabel Silva Costa, na RTP. O estilo peremptório não suscita dúvidas. Pode Passos Coelho proceder a todo o tipo de reverências e de abandonos da decência que ela não dissimula o facto de mandar, e de impor uma política, uma doutrina e uma ideologia. Aliás, dominantes na Europa. A passagem por Lisboa constituiu uma distanciação do povo: cancelas, baias, dispositivo policial invulgar, um corredor absurdo que, no fundo, implicam a ausência ou a fraqueza de mecanismos institucionais.
Há qualquer coisa de inanidade nesta encenação que aparta governantes de governados. O receio de haver algo de grave contra a visita é a extensão do medo que envolve os membros do Governo. Todos eles sabem os riscos que correm de ser insultados, logo-assim põem pé na rua. A dualização da sociedade está, também, a dar cabo da identidade colectiva. A simbiose do Estado e do povo foi dissolvida. Há dois Portugais em Portugal, assim como há duas Europas na Europa. Merkel e Passos representam uma delas, certamente a mais ameaçadora. Na outra, estamos nós, os ameaçados. A contra-conduta, a dissidência não são, somente, actos políticos; sobretudo, representam urgentes condutas morais.» [DN]
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