(Clara Ferreira Alves, in Expresso, 25/04/2015)
Clara Ferreira Alves
Na vulgata bíblica, o nosso coelho seria um bem-aventurado, bem-aventurados os pobres de espírito porque deles será o reino dos céus.
Temos de considerar os pronunciamentos do primeiro-ministro como indissociáveis do dr. Passos Coelho. O que quer dizer que quando diz uma palurdice com jovialidade ou desdém, o primeiro-ministro fala. E Passos Coelho diz não uma mas várias palurdices. Anote-se a imaginativa comparação de Portugal com Singapura e a aposta na “competitividade” da economia portuguesa (a sétima mais lenta do mundo). É a comparação do sétimo cágado do mundo com o galgo asiático. Calcula-se que o nosso primeiro nunca tenha posto um pé em Singapura e muito menos passado os olhos pelas obras completas de Lee Kwan Yew. Um fez do prostíbulo e entreposto colonial de Singapura um país moderno, próspero e que trata bem os seus nacionais, outro esqueceu-se de pagar a Segurança Social e em vez de escrever e fazer obra entretém-se a denunciar os pecados alheios e a desculpar-se dos próprios. Na vulgata bíblica, o nosso Coelho seria um bem-aventurado, bem-aventurados os pobres de espírito porque deles será o reino dos céus. Um simples. Mas teria de ser um simples de coração e quanto a isto não estou certa. Vem à tona na pior altura um rancor ou uma malícia que diminuem qualquer primeiro-ministro. José Mariano Gago, um ex-ministro e um colega da política e de Governo morreu. Morreu discretamente, como viveu. Os homens com obra não precisam de portadores de recados nem de agências de comunicação. O ex-ministro da Ciência morreu e o que se espera de um chefe de Governo é que, educadamente, lamente a perda, cumprimente a família e faça o elogio institucional. Não se trata aqui de mortuis nihil nisi bonum e sim de um ato de justiça. E não se ajustam contas nem se fazem insinuações com mortos. Li nos jornais que no pronunciamento público sobre a perda, o primeiro-ministro introduziu um “apesar de”. Deu um contributo inestimável “apesar de” ter feito parte de governos socialistas. É como entrar num funeral e dar os pêsames à família dizendo: foi um grande homem apesar de ser vosso parente. Porque José Mariano Gago foi não apenas um ministro visionário, competente e dedicado que mudou a educação e qualificação científica em Portugal, fê-lo com o Partido Socialista e com os socialistas. Tinha sido um resistente, um chefe estudantil da oposição que não tinha medo do regime e que conseguia ser ao mesmo tempo um aluno brilhante, destemido e convicto. José Mariano Gago trabalhou com António Guterres e com José Sócrates como primeiros-ministros e nunca renegou essa companhia. O problema de Passos Coelho, e do corpo expedicionário que o acompanha na intimidade do boudoir político e aos quais, como dizem as notícias, ele “ouve”, e que “consulta”, é o da falta de juízo e conselho. Deviam obrigá-lo a medir as palavras porque há um limite para a palurdice. Ou o primeiro-ministro pensa o que diz, e acha que se Mariano Gago não fosse socialista aumentava o seu capital humano, político e científico, ou então o primeiro-ministro estava a fazer humor à custa de um adversário político prematuramente morto por doença. O diabo que escolha.
Há uns bons anos, se a memória não me falha e a memória do então vivo Vasco Graça Moura também não, o romancista Fernando Namora tinha num dos romances a frase: “o ruído ensurdecedor da máquina de cortar fiambre”. Namora teve o seu período de esplendor e foi sepultado sem ter ressuscitado mas no tempo em que isto se passava estava muito vivo e era muito lido e vendido. O Vasco e eu tínhamos uma pequena coleção de pérolas literárias, uma coleção de péssimas imagens da literatura portuguesa, e esta era uma delas. Uma descoberta do Vasco, juntamente com esta de outro estro: “O pôr do sol no Tejo parecia a hemoptise de um príncipe russo”. Ou mais ou menos isto… Eu gosto particularmente do ruído ensurdecedor da máquina de cortar fiambre, que me parece um arranjo minucioso de insignificâncias. Suponho que o autor comparava o ruído ensurdecedor da máquina de cortar fiambre a uma orgia sonora destinada a contrastar ou reforçar o resto da frase. Nunca li o livro nem li a frase mas confio na memória seletiva do Vasco Graça Moura. Se não fosse de Namora seria igualmente válida a proposição. Utilize-se o ruído ensurdecedor da máquina de cortar fiambre quando há necessidade de um termo que defina a frase destituída de sentido, nula, prodigiosamente vazia. O “cant.” Muito do jargão político oficial é isto. E muito do discurso político do PSD de Passos é isto, o ruído ensurdecedor da máquina de cortar fiambre. Se quisermos associar à imagem a ideia de austeridade, cortar o fiambre, a frase é perfeita. E o autor um génio porque o que não resultou na literatura resultou, por metáfora e metonímia, na vida
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