«O documento do PS pode não ter sido concebido como a quintessência do reformismo progressista, mas o seu acolhimento tão surpreendente num contexto de descrença tornou-o uma peça política essencial.
A recuperação do desastroso estado de coisas que vai ser legado ao país em Outubro próximo implica medidas corajosas e contra a corrente económica dominante nos anos pós-crise.
O PS não deve enjeitar responsabilidades passadas. Por ela pagou o afastamento do poder, muitas acusações injustas e esquecimentos oportunistas. Foi forçado a assistir à omissão de que até 2008 se recuperou crescimento e reformou a administração, a universidade e a ciência, a Educação, a Saúde e a Segurança Social. Criaram-se fileiras produtivas ligadas à energia de que agora o país colhe frutos. Investiu-se pesadamente na refinação, na indústria papeleira e na aeronáutica, que hoje ufanam os que delas descriam. Prosseguiu uma silenciosa revolução da agricultura que mudou padrões, empresários, exportação e criou a base para a auto-sustentação financeira do respectivo produto. Tal como a formação profissional, a modernização do secundário contra ventos e marés do sindicalismo de sector, abençoado pela direita. E sobretudo a formação superior com doutoramentos, projectos e parcerias internacionais que nos emparelham com o que de melhor se faz. Também se cometeram erros, que os detratores se não cansam de ampliar. Talvez se tenha deixado prolongar a crença nos equilíbrios automáticos e na solidariedade europeia. Fiámos-nos na sorte e não corremos quando devíamos. Acreditou-se que o grande capital doméstico tinha o mesmo patriotismo que os peões da lide, que a ganância era estigma reservado aos milionários americanos e que o mundo se havia de recompor num patamar sempre superior. Admitiu-se, tempo de mais, a solidão governativa como sinónimo de eficácia na acção.
Mas quando comparamos com o que os seguintes depois fizeram e teimam em prosseguir, quase nos podíamos consolar, não fora a dimensão do desastre e as suas consequências na rotura do tecido social. Em quatro anos, entre 2011 e 2014, uma enraivecida contra-revolução social abateu-se sobre pobres e desmunidos. Menos 50 mil beneficiários de abono de família, menos 64 mil do complemento solidário para idosos, menos 112 mil inscritos no rendimento social de inserção. Mais 31 mil desempregados no sentido restrito do termo, mais 113 mil desencorajados de procurar emprego, mais 80 mil desempregados de longa duração. De todos os desempregados, apenas 30% têm qualquer forma de cobertura social. Mais 146 mil cidadãos em risco de pobreza, 60 mil dos quais são crianças.
Chegam-nos agora os números de 2014 relativos às estatísticas vitais. Quando, em 2011, haviam nascido quase 97 mil crianças, em 2014, nasceram pouco mais de 82 mil. A perda acumulada de nados-vivos em quatro anos atingiu 19 mil nascimentos. Como é possível convencer os casais jovens a ter filhos, se um terço deles está desempregado e outro terço emigrado? Medida em termos de saldo fisiológico, ou seja, a diferença entre nascimentos e óbitos, nesses quatro anos o saldo negativo acumulado atingiu quase 70 mil portugueses. Se lhes acrescentarmos os 350 mil emigrantes que, entre 2011 e 2013, nos deixaram, na maioria jovens, activos e com formação média e superior, ficamos em condições de avaliar a dimensão do desastre.
Eis por que é tão importante atribuir a primeira prioridade ao emprego. Promovendo emprego, recuperamos pessoas e ânimo, reduzimos subsídios sociais, melhoramos a sustentabilidade financeira do sistema, reduzimos a emigração. E, para além de tudo, relançamos a actividade económica, base do crescimento. Em vez de olharmos o desemprego apenas como uma variável dependente, um dano colateral de uma economia revertida, passaremos a considerar o emprego como uma variável sobre a qual se deve actuar, por conhecermos os seus efeitos potenciais no crescimento. Esse é o grande mérito do documento da Década. Em vez de remedeios para minorar sofrimento, como os 130 mil ocupados em novos estágios do IEFP entre 2011 e 2014, temos de recolocar o emprego a sério, e não o precário ou os estágios, no centro da nossa mudança económica.
Surgem agora as críticas da esquerda-esquerda ao documento da Década. Que não fala do salário mínimo, que relançar a economia pelo lado da procura é apenas um pouco menos do mesmo que relançá-la pelo lado da oferta (patriótico seria renegar a dívida), que, ao fim e ao cabo, o programa apresentado ao PS é "liberal-social", querendo com esse nome designá-lo como um programa certamente "burguês". Que não seria digno de Piketty, como se este fosse agora o árbitro das elegâncias ideológicas.» [
Público]
Autor:
António Correia de Campos