Há momentos cruciais, na nossa vida, como os há na vida dos países.
Pedro Silva Pereira escreve assim, para se ler, tudo por inteiro
«Nem tudo foi mau. Alguns factos
promissores marcaram a evolução do Mundo no ano que agora termina: as
“primaveras árabes” e a queda dos ditadores; a morte de Bin Laden e a retirada
norte-americana do Iraque.
É cedo, porém, para dizer que futuro corresponderá às novas esperanças que estes factos legitimam.
Tentação maior será eleger como facto do ano o agravamento da crise do euro, que ameaça o projecto europeu e a economia mundial. Mas, pondo as coisas em perspectiva, é mais provável que o ano de 2011 venha a ser recordado, apenas, como mais um ano da Grande Crise. A mesma Grande Crise que se iniciou em 2007, nos Estados Unidos da América, com a crise financeira do ‘subprime', e que, em 2008-2009, se tornou numa crise económico-financeira quase global (de proporções nunca vistas desde 1929), para depois evoluir, em 2010-2011, para uma crise das dívidas soberanas, que atingiu de modo especial a zona euro, gerando a actual "crise sistémica". Em boa verdade, nada disto começou em 2011.
É certo, há uma narrativa que insiste em desligar as coisas, como se a crise internacional de 2008-2009 pertencesse a "outro filme" (já terminado e com final feliz), bem distinto do da crise das dívidas soberanas e do euro, a que agora assistimos. Mas são episódios da mesma série dramática.
De facto, a grande crise começou no sistema financeiro (não na indisciplina orçamental dos Estados) e arrastou a economia para uma recessão global. O aumento generalizado dos défices e das dívidas nos últimos anos foi, no essencial, consequência directa dessa recessão e da resposta que os Estados tiveram de dar para impedir a derrocada dos bancos e uma nova Grande Depressão, análoga à dos anos 30. No caso da zona euro, essa resposta não foi sequer um exercício avulso e muito menos uma manifestação de indisciplina: correspondeu à execução de uma estratégia europeia coordenada para enfrentar a crise.
Que este quadro de excepção tenha atingido mais as economias estruturalmente mais vulneráveis não parece que possa ser motivo de grande surpresa, embora seja sempre mais convidativo fulanizar responsabilidades, como vai sucedendo por essa Europa fora. Facto é que a agitação nos mercados não foi uma simples resposta racional à vulnerabilidade revelada pelos fundamentais das economias mais desequilibradas ou endividadas. Foi, isso sim, um movimento assimétrico e essencialmente especulativo, que se centrou na zona euro. E é preciso perceber porquê.
A ortodoxia dominante tem sobre isto, como sobre tudo o resto, uma posição simples. Continuando a supor, apesar de tudo, a racionalidade intrínseca dos mercados e das suas agências de ‘rating', não consegue ver na crise das dívidas soberanas mais do que a resposta "racional" de credores genuinamente preocupados com a "indisciplina orçamental", agravada pelos "excessos expansionistas" na resposta à recessão. Daí a estratégia de uma nota só, que pretende acalmar os mercados à custa de mais austeridade (foi essa, aliás, a nova orientação europeia adoptada no início de 2010 e que vinculou também Portugal, dando origem aos sucessivos PEC). Uma austeridade agora reforçada por um novo quadro de disciplina orçamental, acompanhado de sanções automáticas. A imperturbável ortodoxia dominante diz saber muito bem o que os mercados querem. O único problema é que os mercados não parecem estar de acordo.
A verdade é que a falha sistémica do euro não se resume aos instrumentos de garantia da disciplina orçamental. Reside, também, na ausência de instituições políticas legitimadas para prosseguir uma governação económica coerente, capaz de gerar crescimento, e, sobretudo, na ausência de instrumentos solidários de defesa das dívidas soberanas contra a especulação, num contexto de crise do crédito. Desde a crise grega - e o momento em que os parceiros do euro resolveram dizer "nós não somos a Grécia" - os especuladores sabem que esta fragilidade da zona euro pode ser perturbadora mas é também uma excelente oportunidade de negócio. Podem traçar-se "linhas vermelhas" e erguer-se "muros". Pode até gritar-se "daqui o contágio não passará" - mas a verdade é que os países atingidos se sucedem uns aos outros. O critério muda, o negócio é sempre o mesmo.
E voltamos ao princípio. Bem vistas as coisas, estamos ainda a assistir ao ajustamento telúrico dos fluxos financeiros colossais postos em movimento descontrolado e desesperadamente especulativo pela crise começada em 2007 e causada por um sistema financeiro complexo, ganancioso e desregulado. É ainda esse dinamismo financeiro especulativo que marca o ritmo e o sentido da crise que enfrentamos - e é a ele que os líderes europeus, em especial a dupla Merkel-Sarkozy, não souberam dar resposta em sucessivas cimeiras, falhando no propósito de superar a crise do euro. É certo, a recusa obstinada das euro-obrigações e da reconfiguração do BCE como credor de último recurso foi acompanhada de pretensos sucedâneos: instituição de fundos de estabilização financeira, intervenções volumosas do BCE no mercado secundário e até inéditos empréstimos massivos ao sistema financeiro. Melhor que nada, dir-se-á. Mas tudo insuficiente. A crise das dívidas soberanas - que é, praticamente desde o início, uma crise do euro - agravou-se seriamente em 2011, a ponto de ameaçar o próprio projecto europeu e de acentuar o preocupante declínio da Europa.
É este o contexto da situação portuguesa, enfrentada por uma economia com óbvias debilidades estruturais - que ninguém nega. Mas foi este contexto crítico que forças políticas de sinal contrário menosprezaram, no mês de Março, ao coligar-se no Parlamento, sob os sinais de incitamento do Presidente da República, para juntar uma crise política à crise financeira. Sucedeu assim em Portugal o que nunca tinha acontecido, nem voltou a acontecer, na zona euro: a rejeição parlamentar de um programa de estabilidade e crescimento (o PEC IV), expressamente apoiado pelas instituições europeias - sem dúvida, o facto do ano, a nível nacional.
As consequências foram imediatas: queda abrupta e sem precedentes do ‘rating' da República, seguida da queda dos ‘ratings' dos bancos e das maiores empresas; subida desmesurada e incomportável dos juros nos mercados financeiros de dívida soberana; ruptura definitiva no acesso ao financiamento por parte do Estado, dos bancos e da economia. Em menos de 15 dias Portugal foi forçado a pedir ajuda externa.
A demagogia triunfante esforçou-se por virar as coisas ao contrário e fazer do alegado "despesismo" do Estado a causa do risco de "não haver dinheiro para pagar salários e pensões". Mas se em 2011 o Estado teve mais receita e menos despesa do que no ano anterior, está bem de ver que o risco de ruptura teve outra origem: a impossibilidade de, em plena crise financeira, continuar a aceder aos mercados para o financiamento corrente da dívida pública, com o apoio prometido do BCE (como sucede hoje com a Itália ou a Espanha) - e essa impossibilidade foi consequência directa da rejeição do PEC IV.
Esta opção teve custos elevados, mesmo para além do próprio pedido de ajuda externa, que levou ao Memorando de Entendimento com a troika. Mas cumpriu o seu objectivo político: proporcionar eleições antecipadas, para uma mudança de Governo.
Se já antes o PEC IV tinha sido rejeitado em nome do argumento, hoje ridículo, de que a direita era "contra o aumento dos impostos", a campanha eleitoral do partido vencedor girou em torno de uma promessa mil vezes repetida: austeridade contra "as gorduras do Estado", não contra as pessoas. Compreende-se bem que os portugueses tenham votado na esperança de melhorar as suas vidas.
Só que a promessa não era para cumprir, como agora se vê. Obtidos os votos, o novo Governo PSD/CDS lançou o mais violento pacote de austeridade "contra as pessoas" de que há memória - sem disfarçar a intenção deliberada de ir "além da troika". Obcecado pela austeridade e disposto a utilizá-la como instrumento de uma agenda ideológica adversa ao Estado Social, do Governo só se ouve uma palavra de ordem: parar. E, de facto, está a parar o Estado e está a parar a economia. Consultam-se as Grandes Opções do Plano para 2011-2015 ou o Orçamento para 2012 e vê-se que o Governo prevê para o próximo ano uma recessão de -2,8%, embora já admita que será pior. Mas quando se procura a previsão para a economia em 2013, não há lá nenhuma. Nem boa, nem má. E talvez isto seja o pior de tudo: esta política não tem nada a dizer sobre o futuro.» [DE]
É cedo, porém, para dizer que futuro corresponderá às novas esperanças que estes factos legitimam.
Tentação maior será eleger como facto do ano o agravamento da crise do euro, que ameaça o projecto europeu e a economia mundial. Mas, pondo as coisas em perspectiva, é mais provável que o ano de 2011 venha a ser recordado, apenas, como mais um ano da Grande Crise. A mesma Grande Crise que se iniciou em 2007, nos Estados Unidos da América, com a crise financeira do ‘subprime', e que, em 2008-2009, se tornou numa crise económico-financeira quase global (de proporções nunca vistas desde 1929), para depois evoluir, em 2010-2011, para uma crise das dívidas soberanas, que atingiu de modo especial a zona euro, gerando a actual "crise sistémica". Em boa verdade, nada disto começou em 2011.
É certo, há uma narrativa que insiste em desligar as coisas, como se a crise internacional de 2008-2009 pertencesse a "outro filme" (já terminado e com final feliz), bem distinto do da crise das dívidas soberanas e do euro, a que agora assistimos. Mas são episódios da mesma série dramática.
De facto, a grande crise começou no sistema financeiro (não na indisciplina orçamental dos Estados) e arrastou a economia para uma recessão global. O aumento generalizado dos défices e das dívidas nos últimos anos foi, no essencial, consequência directa dessa recessão e da resposta que os Estados tiveram de dar para impedir a derrocada dos bancos e uma nova Grande Depressão, análoga à dos anos 30. No caso da zona euro, essa resposta não foi sequer um exercício avulso e muito menos uma manifestação de indisciplina: correspondeu à execução de uma estratégia europeia coordenada para enfrentar a crise.
Que este quadro de excepção tenha atingido mais as economias estruturalmente mais vulneráveis não parece que possa ser motivo de grande surpresa, embora seja sempre mais convidativo fulanizar responsabilidades, como vai sucedendo por essa Europa fora. Facto é que a agitação nos mercados não foi uma simples resposta racional à vulnerabilidade revelada pelos fundamentais das economias mais desequilibradas ou endividadas. Foi, isso sim, um movimento assimétrico e essencialmente especulativo, que se centrou na zona euro. E é preciso perceber porquê.
A ortodoxia dominante tem sobre isto, como sobre tudo o resto, uma posição simples. Continuando a supor, apesar de tudo, a racionalidade intrínseca dos mercados e das suas agências de ‘rating', não consegue ver na crise das dívidas soberanas mais do que a resposta "racional" de credores genuinamente preocupados com a "indisciplina orçamental", agravada pelos "excessos expansionistas" na resposta à recessão. Daí a estratégia de uma nota só, que pretende acalmar os mercados à custa de mais austeridade (foi essa, aliás, a nova orientação europeia adoptada no início de 2010 e que vinculou também Portugal, dando origem aos sucessivos PEC). Uma austeridade agora reforçada por um novo quadro de disciplina orçamental, acompanhado de sanções automáticas. A imperturbável ortodoxia dominante diz saber muito bem o que os mercados querem. O único problema é que os mercados não parecem estar de acordo.
A verdade é que a falha sistémica do euro não se resume aos instrumentos de garantia da disciplina orçamental. Reside, também, na ausência de instituições políticas legitimadas para prosseguir uma governação económica coerente, capaz de gerar crescimento, e, sobretudo, na ausência de instrumentos solidários de defesa das dívidas soberanas contra a especulação, num contexto de crise do crédito. Desde a crise grega - e o momento em que os parceiros do euro resolveram dizer "nós não somos a Grécia" - os especuladores sabem que esta fragilidade da zona euro pode ser perturbadora mas é também uma excelente oportunidade de negócio. Podem traçar-se "linhas vermelhas" e erguer-se "muros". Pode até gritar-se "daqui o contágio não passará" - mas a verdade é que os países atingidos se sucedem uns aos outros. O critério muda, o negócio é sempre o mesmo.
E voltamos ao princípio. Bem vistas as coisas, estamos ainda a assistir ao ajustamento telúrico dos fluxos financeiros colossais postos em movimento descontrolado e desesperadamente especulativo pela crise começada em 2007 e causada por um sistema financeiro complexo, ganancioso e desregulado. É ainda esse dinamismo financeiro especulativo que marca o ritmo e o sentido da crise que enfrentamos - e é a ele que os líderes europeus, em especial a dupla Merkel-Sarkozy, não souberam dar resposta em sucessivas cimeiras, falhando no propósito de superar a crise do euro. É certo, a recusa obstinada das euro-obrigações e da reconfiguração do BCE como credor de último recurso foi acompanhada de pretensos sucedâneos: instituição de fundos de estabilização financeira, intervenções volumosas do BCE no mercado secundário e até inéditos empréstimos massivos ao sistema financeiro. Melhor que nada, dir-se-á. Mas tudo insuficiente. A crise das dívidas soberanas - que é, praticamente desde o início, uma crise do euro - agravou-se seriamente em 2011, a ponto de ameaçar o próprio projecto europeu e de acentuar o preocupante declínio da Europa.
É este o contexto da situação portuguesa, enfrentada por uma economia com óbvias debilidades estruturais - que ninguém nega. Mas foi este contexto crítico que forças políticas de sinal contrário menosprezaram, no mês de Março, ao coligar-se no Parlamento, sob os sinais de incitamento do Presidente da República, para juntar uma crise política à crise financeira. Sucedeu assim em Portugal o que nunca tinha acontecido, nem voltou a acontecer, na zona euro: a rejeição parlamentar de um programa de estabilidade e crescimento (o PEC IV), expressamente apoiado pelas instituições europeias - sem dúvida, o facto do ano, a nível nacional.
As consequências foram imediatas: queda abrupta e sem precedentes do ‘rating' da República, seguida da queda dos ‘ratings' dos bancos e das maiores empresas; subida desmesurada e incomportável dos juros nos mercados financeiros de dívida soberana; ruptura definitiva no acesso ao financiamento por parte do Estado, dos bancos e da economia. Em menos de 15 dias Portugal foi forçado a pedir ajuda externa.
A demagogia triunfante esforçou-se por virar as coisas ao contrário e fazer do alegado "despesismo" do Estado a causa do risco de "não haver dinheiro para pagar salários e pensões". Mas se em 2011 o Estado teve mais receita e menos despesa do que no ano anterior, está bem de ver que o risco de ruptura teve outra origem: a impossibilidade de, em plena crise financeira, continuar a aceder aos mercados para o financiamento corrente da dívida pública, com o apoio prometido do BCE (como sucede hoje com a Itália ou a Espanha) - e essa impossibilidade foi consequência directa da rejeição do PEC IV.
Esta opção teve custos elevados, mesmo para além do próprio pedido de ajuda externa, que levou ao Memorando de Entendimento com a troika. Mas cumpriu o seu objectivo político: proporcionar eleições antecipadas, para uma mudança de Governo.
Se já antes o PEC IV tinha sido rejeitado em nome do argumento, hoje ridículo, de que a direita era "contra o aumento dos impostos", a campanha eleitoral do partido vencedor girou em torno de uma promessa mil vezes repetida: austeridade contra "as gorduras do Estado", não contra as pessoas. Compreende-se bem que os portugueses tenham votado na esperança de melhorar as suas vidas.
Só que a promessa não era para cumprir, como agora se vê. Obtidos os votos, o novo Governo PSD/CDS lançou o mais violento pacote de austeridade "contra as pessoas" de que há memória - sem disfarçar a intenção deliberada de ir "além da troika". Obcecado pela austeridade e disposto a utilizá-la como instrumento de uma agenda ideológica adversa ao Estado Social, do Governo só se ouve uma palavra de ordem: parar. E, de facto, está a parar o Estado e está a parar a economia. Consultam-se as Grandes Opções do Plano para 2011-2015 ou o Orçamento para 2012 e vê-se que o Governo prevê para o próximo ano uma recessão de -2,8%, embora já admita que será pior. Mas quando se procura a previsão para a economia em 2013, não há lá nenhuma. Nem boa, nem má. E talvez isto seja o pior de tudo: esta política não tem nada a dizer sobre o futuro.» [DE]