O título da capa diz assim: Freeport. Ex-ministro de Guterres diz que Sócrates deveria ter sido arguido”.
A manchete refere-se a uma peça supostamente baseada na declaração de voto de Júlio Castro Caldas, o magistrado relator do processo disciplinar instaurado pelo Conselho Superior do Ministério Público (CSMP) aos procuradores que investigaram o Caso Freeport.
Embora não se conheça o texto integral da declaração de voto, verifica-se que certas frases retiradas da mesma e citadas no corpo da notícia não validam o sentido do título. Eis as frases:
“Não se mantém um cidadão sob suspeita sem que seja constituído arguido, para que se possa defender” (…) “Deixou-se para o fim a inquirição de um cidadão que estava sob suspeita, mesmo que esse cidadão fosse o primeiro-ministro.” (…) “havendo fundamentos para um juízo de suspeição, deveriam ter sido tomadas todas as precauções para se fazer a inquirição”. (…) ”Se fosse para arquivar mais tarde, justificava-se essa decisão. Caso contrário partia-se para uma acusação” (…) “Votei vencido. Mas não fiquei convencido.” (…) “É insuportável o prolongamento no tempo de uma investigação criminal, mantendo um suspeito sem ser constituído arguido” (…) “em tempo processualmente oportuno, ter convocado a perguntas todos os cidadãos, fossem eles chefes de governo ou ministros”.
É flagrante o desfazamento entre o sentido que o jornal imprimiu ao título e as palavras do magistrado contidas nos excertos da declaração de voto que o próprio jornal cita. Quem fez o título não parece ter lido a declaração de voto. Instrumentalizou uma frase, retirando-a do contexto e conferindo-lhe um sentido oposto àquele que se extrai dos elementos citados.
A estória do caso Freeport tem duas faces: uma jurídica outra jornalística. Da primeira, fala o processo judicial. Da segunda, falam as deliberações da ERC e as centenas de páginas em que as mesmas se baseiam, apenas lidas pelos directamente interessados. Dos testemunhos recolhidos nas diversas audições realizadas na altura emerge uma outra estória do Freeport que põe a nú as ligações perversas e promíscuas entre a justiça e o jornalismo.
Na altura, em Julho de 2010, deixei disso testemunho em declaração de voto que anexei à deliberação da ERC sobre a suspensão do Jornal Nacional de Sexta, da TVI:
1. A suspensão do Jornal Nacional de Sexta é inseparável da cobertura do “caso Freeport”, como mostra o relatório elaborado pela ERC para este processo.
2. Durante meses a fio - Janeiro a Julho de 2009 – o Jornal Nacional de Sexta foi um espaço de concentração de peças sobre o Freeport estruturadas em forma de narrativa sistemática de denúncia tendo como alvo o Primeiro-Ministro, José Sócrates.
3. O citado relatório revela que, nos meses de Abril e Maio de 2009, mais de metade do tempo dedicado ao Freeport em todos os blocos de informação da TVI ocorreu no Jornal Nacional de Sexta, atingindo esse caso também em Fevereiro e Julho valores próximos de 50% do tempo total que lhe foi dedicado pela TVI. Esses dados são ainda confirmados quando se compara o volume e a duração das peças sobre o Freeport emitidas pelo Jornal Nacional da TVI com as emitidas pelo Telejornal da RTP e pelo Jornal da Noite da SIC, ultrapassando a TVI, largamente, as suas congéneres.
4. No decorrer do presente processo apurou-se que, na sua fase inicial, a cobertura do “caso” Freeport partiu de uma estratégia concertada entre o Jornal Nacional de Sexta e o semanário SOL, mencionada à ERC pelos seus responsáveis, que consistia na antecipação pelo JN6 das notícias que seriam publicadas no dia seguinte pelo SOL.
5. Os depoimentos prestados à ERC revelam que fontes do processo procuravam os jornalistas da TVI, fornecendo-lhes elementos do processo em segredo de justiça, alimentando assim o Jornal Nacional de Sexta com um fluxo contínuo de notícias sobre o caso.
6. A demonstrar esse facto, um dos depoimentos recolhidos pela ERC refere que uma jornalista da equipa do JN6, ali identificada, “foi lá, chamada pelos procuradores” e que as fontes “arriscavam imenso“, reconhecendo que o Jornal Nacional de Sexta “tinha tanta informação” e “não era desmentido, porque aquela informação era verdadeira e as pessoas, quando a davam, estavam a arriscar“. Assumem assim os seus responsáveis que as peças sobre o Freeport dependiam de impulso de fontes interessadas (ligadas ao processo, segundo os próprios depoimentos) e não de “investigação própria”, como pomposamente vinha sendo referido.
7. A confirmar a dependência e a falta de equidistância do Jornal Nacional de Sexta face às fontes do processo Freeport, o relatório da ERC mostra que o arquivamento do caso em Inglaterra, pelo SFO, coincidiu com o abaixamento do número de notícias exclusivas na TVI.
8. Os depoimentos relatam que com a entrada da nova Direcção de Informação da TVI as fontes secaram, quebrando-se em grande parte o fluxo da informação provinda do processo. Veja-se este excerto de um depoimento: “a partir da altura em que (…) as coisas mudaram” as fontes “têm medo” e “o ritmo de difusão tem tido como consequência o afastamento gradual de fontes de informação“.
9. Fica claro nos depoimentos dos jornalistas responsáveis pela cobertura do “caso Freeport” que a suspensão do JN6 e a orientação conferida à informação da TVI pela nova Direcção de Informação, mais exigente na confirmação da informação sobre o Freeport – analisada “à lupa” segundo um depoente -, desencorajaram as fontes de procurarem os jornalistas, retirando visibilidade ao caso.
10. Os dados apurados na presente investigação revelam, tal como já o havia feito a primeira investigação realizada pela ERC sobre o JN6, uma violação sistemática de princípios nucleares da actividade jornalística, tais como o contraditório, a presunção da inocência, a defesa do bom nome e da reputação, no caso, do Primeiro-Ministro, alvo de graves acusações.
11. Exemplos da violação desses princípios podem ser verificados na documentação fornecida à ERC pela TVI, na qual se constata, por exemplo, que no dia em que foi divulgado no JN6 o DVD em que o Primeiro-Ministro era acusado de “corrupto” o seu gabinete foi contactado por e-mail apenas 19 minutos antes do início do Jornal para se pronunciar sobre esse DVD sem que a TVI lhe tivesse dado a conhecer o seu conteúdo.
12. O processo põe a descoberto uma tentativa, que viria a revelar-se frustrada, de demonstrar interferência do Governo na cessação do JN6, não se coibindo alguns dos depoentes de invocar rumores, conversas de corredor e conspirações que nunca foram capazes de concretizar. O mais concreto e relevante que a investigação conseguiu carrear para o processo sobre essa alegada interferência foram as declarações do Primeiro-Ministro no Congresso do seu Partido e na entrevista à RTP, como se um político não pudesse criticar quem repetidamente o caluniou sem lhe permitir defender-se, como se provou ser prática no JN6.
13. Muitos dos casos apontados como revelando interferências ou pressões do Primeiro-Ministro, por si ou por interpostas pessoas, foram relatados por vários depoentes como resultado de conversas mantidas entre si, sem que qualquer deles as tivesse testemunhado ou sequer pudesse indicar nomes ou pistas credíveis que levassem ao apuramento dos factos. Estão neste caso relatos de telefonemas para o Rei de Espanha, interferências de António Vitorino e jantares com assessores do Primeiro-Ministro. Esta constatação fragilizou os depoimentos dos seus autores, uma vez que não foram apresentadas provas – ou, sequer, indícios razoáveis – que permitissem validar, minimamente, os factos apontados e as acusações feitas.
14. Falharam, assim, as afirmações da equipa que cobria o “caso Freeport” de que a decisão de pôr fim ao Jornal Nacional de Sexta partira do Governo. De facto, o processo demonstra cabalmente que a decisão se inseriu num processo longamente amadurecido e partilhado por parte das administrações da TVI, da Media Capital e da Prisa, cuja concretização só não possuía data marcada.
15. Também os depoimentos dos membros dos conselhos de administração da TVI e da Media Capital nada de substancial trouxeram ao processo, para além de uma melhor explicitação do incómodo que lhes causava o modelo do Jornal Nacional de Sexta, quer quanto ao formato, quer quanto ao estilo da sua apresentadora, assumidamente agressivo para com o Governo, em particular para com o Primeiro-Ministro, como aliás, reconhece, um declarante.
16. Ficou claro, não apenas nos depoimentos à ERC de administradores da TVI mas também nas audições da Comissão Parlamentar de Inquérito, o desejo de fazer cessar o Jornal Nacional de Sexta, uma vez que a então direcção de informação não se mostrava disposta a alterar o seu figurino no sentido de uma informação isenta que respeitasse o estatuto editorial da TVI e as regras que orientam a actividade jornalística.
Em suma:
a) A suspensão do JN6 surge após largos meses de cobertura do “caso Freeport” que se traduziu em acusações difamatórias e crítica sistemática ao Primeiro-Ministro, patentes no número, duração, concentração e repetição de peças em que José Sócrates era directa ou indirectamente apontado como suspeito de corrupção, em atropelo a princípios básicos do jornalismo.
b) A investigação levada a cabo pela ERC mostra grave instrumentalização do Jornal Nacional de Sexta por parte de fontes ligadas ao processo Freeport, que lhe faziam chegar elementos em segredo de justiça, visando incriminar o Primeiro-Ministro, os quais, sabe-se agora, não foram validados pela investigação judicial.
c) Os depoimentos realizados no âmbito do processo revelam que a administração da TVI em diversas ocasiões manifestou ao então Director-Geral preocupação com a orientação conferida ao JN6, de que era responsável a sua própria mulher, nomeadamente, no que respeitava à cobertura do “caso Freeport” por poder pôr em causa o estatuto editorial da TVI, sem que o Director-Geral tivesse sido sensível a analisar a situação.
d) A cobertura do “caso Freeport “levada a cabo pelo Jornal Nacional de Sexta, constitui um dos exemplos mais negativos de instrumentalização de um espaço televisivo por parte de poderes que lhe são alheios, ao serviço de interesses que nada tinham a ver com jornalismo sério e isento.
e) Forçoso é, pois, concluir que a metáfora da “caça ao homem” usada pelo Primeiro-Ministro contra o JN6 ganha realidade quando se analisam os factos apurados na investigação realizada pela ERC
Lisboa, 29 Julho de 2010
Estrela Serrano
(vogal do Conselho Regulador da ERC)