Por:
José Niza
"1. Há hoje em Portugal 600 mil portugueses e portuguesas que não podem fazer greve. Pela simples razão de estarem desempregados.
Há greves e greves.
Uma coisa é uma greve num hospital, onde há doentes para tratar. Outra, é uma greve numa fábrica de parafusos.
Escolher uma profissão – sobretudo se foi o Estado que a pagou – não é apenas escolher uma profissão, é também criar um compromisso de dívida perante a comunidade. E ser-se funcionário público, com todas as garantias de emprego e outras regalias, não é o mesmo que trabalhar num fábrica de sapatos que amanhã pode fechar.
As coisas não são iguais.
E tudo é relativo.
E porque tudo é relativo, parece que algum bom senso e algum sentido de solidariedade – sobretudo numa conjuntura desfavorável como a que estamos vivendo e sofrendo – aconselhariam a que os funcionários públicos, todos eles, estivessem quietinhos.
Pareceria expectável, natural e justo que fossem os desempregados a vir para a rua exigir empregos.
Mas não. Pelo contrário: são os funcionários públicos aos magotes a ocupar as ruas e as praças, com bandeiras e palavras de ordem a exigir o que o Estado – isto é, todos nós – não lhes pode ou não deve dar.
2. Sou médico. Como funcionáro público trabalhei em hospitais psiquiátricos. Nunca fiz greve. Jamais faria greve: por muita razão que eu pudesse ter, um doente carecido de tratamento ainda tem mais.
Se ser médico ou enfermeiro não é isto, e se o juramento de Hipócrates é para esquecer, então é porque está tudo às avessas e cada um fechado a sete chaves nos redutos do seu egoísmo.
É também necessário desmontar a confusão intencional e estúpida de que uma greve nos serviços de saúde é contra o governo. Não é! É contra os doentes!
Contra os pobres doentes que vemos nos telejornais a contar que foram para a porta do Centro de Saúde às cinco da manhã para "ganhar vez" e que, muitas horas depois, alguém mandou regressar a casa sem serem atendidos. Ou contra os doentes que esperaram anos por uma cirurgia e que, no dia aprasado, deram com o nariz na porta da sala de operações.
É isto suportável? É isto admissível?
- Num dos países da Europa onde as diferenças entre os muito ricos e os muito pobres ultrapassam todos os limites da dignidade.
- Num país onde, ao lado de 600 mil desempregados, existem hordas de gestores a ganhar 1700 contos por dia!
- Numa sociedade onde são cada vez mais os médicos a abandonar o Serviço Nacional de Saúde para ir engordar o sector privado, esquecendo-se de que têm uma dívida vitalícia para com o Estado. Estado esse que, quase de borla, lhes proporcionou vinte anos de estudos no básico, no secundário e na universidade.
Onde tudo isto existe e diariamente nos agride, poder-se-á falar de democracia real? Ou será que a democracia é apenas votar de quatro em quatro anos e dar liberdade às Manuelas, aos Monizes e aos Crespos, para caluniarem quem lhes apetece sem que nada lhes aconteça?
3. Enquanto em Portugal não se reconhecer e aceitar que, para além dos imensos direitos que a Constituição da República outorga aos cidadãos, há também deveres importantes e indeclináveis a cumprir, isto não vai ter futuro nesta terra do cada um por si.
É que, mais dia menos dia, a paciência esgota-se, a coisa explode e o silêncio transforma-se num imenso grito.
PS. – Como estive ausente em Marte, onde fui passar as férias da Páscoa, ainda não me dei conta de que o nosso regional deputado Pacheco tenha exigido um inquérito parlamentar ao estranho caso dos submarinos que vertiam dólares. Mas, se já o fez, as minhas desculpas."