«Nem tudo foi mau. Alguns factos
promissores marcaram a evolução do Mundo no ano que agora termina: as
“primaveras árabes” e a queda dos ditadores; a morte de Bin Laden e a retirada
norte-americana do Iraque.
É cedo, porém, para
dizer que futuro corresponderá às novas esperanças que estes factos
legitimam.
Tentação maior será eleger como facto do
ano o agravamento da crise do euro, que ameaça o projecto europeu e a economia
mundial. Mas, pondo as coisas em perspectiva, é mais provável que o ano de 2011
venha a ser recordado, apenas, como mais um ano da Grande Crise. A mesma Grande
Crise que se iniciou em 2007, nos Estados Unidos da América, com a crise
financeira do ‘subprime', e que, em 2008-2009, se tornou numa crise
económico-financeira quase global (de proporções nunca vistas desde 1929), para
depois evoluir, em 2010-2011, para uma crise das dívidas soberanas, que atingiu
de modo especial a zona euro, gerando a actual "crise sistémica". Em boa
verdade, nada disto começou em 2011.
É certo, há
uma narrativa que insiste em desligar as coisas, como se a crise internacional
de 2008-2009 pertencesse a "outro filme" (já terminado e com final feliz), bem
distinto do da crise das dívidas soberanas e do euro, a que agora assistimos.
Mas são episódios da mesma série dramática.
De
facto, a grande crise começou no sistema financeiro (não na indisciplina
orçamental dos Estados) e arrastou a economia para uma recessão global. O
aumento generalizado dos défices e das dívidas nos últimos anos foi, no
essencial, consequência directa dessa recessão e da resposta que os Estados
tiveram de dar para impedir a derrocada dos bancos e uma nova Grande Depressão,
análoga à dos anos 30. No caso da zona euro, essa resposta não foi sequer um
exercício avulso e muito menos uma manifestação de indisciplina: correspondeu à
execução de uma estratégia europeia coordenada para enfrentar a
crise.
Que este quadro de excepção tenha atingido
mais as economias estruturalmente mais vulneráveis não parece que possa ser
motivo de grande surpresa, embora seja sempre mais convidativo fulanizar
responsabilidades, como vai sucedendo por essa Europa fora. Facto é que a
agitação nos mercados não foi uma simples resposta racional à vulnerabilidade
revelada pelos fundamentais das economias mais desequilibradas ou endividadas.
Foi, isso sim, um movimento assimétrico e essencialmente especulativo, que se
centrou na zona euro. E é preciso perceber
porquê.
A ortodoxia dominante tem sobre isto, como
sobre tudo o resto, uma posição simples. Continuando a supor, apesar de tudo, a
racionalidade intrínseca dos mercados e das suas agências de ‘rating', não
consegue ver na crise das dívidas soberanas mais do que a resposta "racional" de
credores genuinamente preocupados com a "indisciplina orçamental", agravada
pelos "excessos expansionistas" na resposta à recessão. Daí a estratégia de uma
nota só, que pretende acalmar os mercados à custa de mais austeridade (foi essa,
aliás, a nova orientação europeia adoptada no início de 2010 e que vinculou
também Portugal, dando origem aos sucessivos PEC). Uma austeridade agora
reforçada por um novo quadro de disciplina orçamental, acompanhado de sanções
automáticas. A imperturbável ortodoxia dominante diz saber muito bem o que os
mercados querem. O único problema é que os mercados não parecem estar de
acordo.
A verdade é que a falha sistémica do euro
não se resume aos instrumentos de garantia da disciplina orçamental. Reside,
também, na ausência de instituições políticas legitimadas para prosseguir uma
governação económica coerente, capaz de gerar crescimento, e, sobretudo, na
ausência de instrumentos solidários de defesa das dívidas soberanas contra a
especulação, num contexto de crise do crédito. Desde a crise grega - e o momento
em que os parceiros do euro resolveram dizer "nós não somos a Grécia" - os
especuladores sabem que esta fragilidade da zona euro pode ser perturbadora mas
é também uma excelente oportunidade de negócio. Podem traçar-se "linhas
vermelhas" e erguer-se "muros". Pode até gritar-se "daqui o contágio não
passará" - mas a verdade é que os países atingidos se sucedem uns aos outros. O
critério muda, o negócio é sempre o mesmo.
E
voltamos ao princípio. Bem vistas as coisas, estamos ainda a assistir ao
ajustamento telúrico dos fluxos financeiros colossais postos em movimento
descontrolado e desesperadamente especulativo pela crise começada em 2007 e
causada por um sistema financeiro complexo, ganancioso e desregulado. É ainda
esse dinamismo financeiro especulativo que marca o ritmo e o sentido da crise
que enfrentamos - e é a ele que os líderes europeus, em especial a dupla
Merkel-Sarkozy, não souberam dar resposta em sucessivas cimeiras, falhando no
propósito de superar a crise do euro. É certo, a recusa obstinada das
euro-obrigações e da reconfiguração do BCE como credor de último recurso foi
acompanhada de pretensos sucedâneos: instituição de fundos de estabilização
financeira, intervenções volumosas do BCE no mercado secundário e até inéditos
empréstimos massivos ao sistema financeiro. Melhor que nada, dir-se-á. Mas tudo
insuficiente. A crise das dívidas soberanas - que é, praticamente desde o
início, uma crise do euro - agravou-se seriamente em 2011, a ponto de ameaçar o
próprio projecto europeu e de acentuar o preocupante declínio da
Europa.
É este o contexto da situação portuguesa,
enfrentada por uma economia com óbvias debilidades estruturais - que ninguém
nega. Mas foi este contexto crítico que forças políticas de sinal contrário
menosprezaram, no mês de Março, ao coligar-se no Parlamento, sob os sinais de
incitamento do Presidente da República, para juntar uma crise política à crise
financeira. Sucedeu assim em Portugal o que nunca tinha acontecido, nem voltou a
acontecer, na zona euro: a rejeição parlamentar de um programa de estabilidade e
crescimento (o PEC IV), expressamente apoiado pelas instituições europeias - sem
dúvida, o facto do ano, a nível nacional.
As
consequências foram imediatas: queda abrupta e sem precedentes do ‘rating' da
República, seguida da queda dos ‘ratings' dos bancos e das maiores empresas;
subida desmesurada e incomportável dos juros nos mercados financeiros de dívida
soberana; ruptura definitiva no acesso ao financiamento por parte do Estado, dos
bancos e da economia. Em menos de 15 dias Portugal foi forçado a pedir ajuda
externa.
A demagogia triunfante esforçou-se por
virar as coisas ao contrário e fazer do alegado "despesismo" do Estado a causa
do risco de "não haver dinheiro para pagar salários e pensões". Mas se em 2011 o
Estado teve mais receita e menos despesa do que no ano anterior, está bem de ver
que o risco de ruptura teve outra origem: a impossibilidade de, em plena crise
financeira, continuar a aceder aos mercados para o financiamento corrente da
dívida pública, com o apoio prometido do BCE (como sucede hoje com a Itália ou a
Espanha) - e essa impossibilidade foi consequência directa da rejeição do PEC
IV.
Esta opção teve custos elevados, mesmo para
além do próprio pedido de ajuda externa, que levou ao Memorando de Entendimento
com a troika. Mas cumpriu o seu objectivo político: proporcionar eleições
antecipadas, para uma mudança de Governo.
Se já
antes o PEC IV tinha sido rejeitado em nome do argumento, hoje ridículo, de que
a direita era "contra o aumento dos impostos", a campanha eleitoral do partido
vencedor girou em torno de uma promessa mil vezes repetida: austeridade contra
"as gorduras do Estado", não contra as pessoas. Compreende-se bem que os
portugueses tenham votado na esperança de melhorar as suas
vidas.
Só que a promessa não era para cumprir, como
agora se vê. Obtidos os votos, o novo Governo PSD/CDS lançou o mais violento
pacote de austeridade "contra as pessoas" de que há memória - sem disfarçar a
intenção deliberada de ir "além da troika". Obcecado pela austeridade e disposto
a utilizá-la como instrumento de uma agenda ideológica adversa ao Estado Social,
do Governo só se ouve uma palavra de ordem: parar. E, de facto, está a parar o
Estado e está a parar a economia. Consultam-se as Grandes Opções do Plano para
2011-2015 ou o Orçamento para 2012 e vê-se que o Governo prevê para o próximo
ano uma recessão de -2,8%, embora já admita que será pior. Mas quando se procura
a previsão para a economia em 2013, não há lá nenhuma. Nem boa, nem má. E talvez
isto seja o pior de tudo: esta política não tem nada a dizer sobre o
futuro.» [
DE]